VOGUE (Portugal)

Pleased to have you

- Por Nuno Miguel Dias.

“Shaken, not stirred”, que é como quem diz “agitado, não mexido”. A frase, inconfundí­vel, terá sido proferida por sete atores e sempre pela mesma personagem: Bond, James Bond. Era assim que o agente secreto pedia o seu dry Martini – ou seria vesper Martini? As opiniões dividem-se. E este é só um de entre vários exemplos de receitas que se tornaram conhecidas graças aos famosos que as populariza­ram. Na ficção ou na vida real, de Sophia Loren a Hemingway, foram várias as celebridad­es que partilhara­m com o mundo as suas poções favoritas.

Areduzida importânci­a deste honrado país também se vê por aqui… Em O Pai Tirano, uma sexagenári­a que inspira ternura (Teresa Gomes) pede, no bar da sala de espetáculo­s onde decorrerá a récita de Mestre José Santana (Vasco Santana), dois pastelinho­s de camarão. O barman informa que não tem. “Então pode ser dois copinhos de vinho branco.” A coisa repete-se com croquetes de vitela e pastelinho­s de Belém, sendo que o solícito empregado serve de imediato os ditos penaltis sem se dar ao trabalho de dizer que não há. Nem pastéis de bacalhau, normalment­e associados a esta cena icónica do cinema português. Isto seria o suficiente para arrancar um coro de gargalhada­s sonoras nas salas de cinema. E arrancou, durante muitos anos. Mas só em Portugal. Foi a dimensão do Brasil, com os seus 214 milhões de habitantes, que espalhou pelo mundo não os nossos ovais pastéis, mas os seus redondos “bolinhos de bacalhau.” Assim como na quase generalida­de de sites a opção da língua portuguesa é representa­da pela bandeira do Brasil, também esses pequenos grandes exemplares do nosso bom gosto gastronómi­co se espalham pelo mundo esféricos e com muito menos bacalhau. E sem que nenhuma personagem de nenhum filme, série de TV ou cantor de MPB os tenha, em algum momento, publicitad­o numa genial ação de product placement, como o são os faustosos pequenos-almoços (cafés da manhã, perdão) das telenovela­s da nossa infância que, pessoalmen­te, me incutiram para sempre o suco de laranja ao acordar e o desejo insaciável por bolo de gergelim. Imaginem pois que vossas mercês são um italiano de gema que vê consagrada­s como sendo um prato genuinamen­te italiano as almôndegas com esparguete que levam a Dama e o Vagabundo a beijarem-se na mesa de um restaurant­e que o chef Tony (ou conhecem outro nome dado pelo cinema norte-americano a um descendent­e da comunidade imigrante italiana?) prepara para o casal. É que em nenhum restaurant­e em Itália vos serão servidas bolas de carne picada com molho de tomate sobre spaghetti e, mais importante, em nenhuma casa italiana tal será sequer equacionad­o. As meat balls, feitas de cortes mais ordinários, acompanhad­as com molho marinara enlatado (produto acessível e amplamente disponível nas grocery stores), foram a solução encontrada pelos italianos que emigraram em massa para os EUA de 1880 a 1920 a fim de recordar, ainda que remotament­e, a sua terra. E nem falemos do mac and cheese e muito menos das cadeias de pizza norte-americanas, que causam embaraço a qualquer transalpin­o. Que ainda por cima são ultracioso­s do seu património gastronómi­co.

Há ossos do ofício piores que viajar, eu sei. Talvez tenha sido por isso que nunca me queixei dessa vida austera, que me obrigava a longas ausências de casa, longos trajetos, por vezes com três ou mais ligações aéreas (Cessnas de dois lugares – o meu e o do piloto - incluídos), longos percursos de carro a que vulgarment­e chamamos road trips, longos serões à fogueira ouvindo lá longe os leões e bem perto o restolhar das hienas no meio do deserto do Kalahari, longos jantares em restaurant­es com longos menus de degustação, enfim, tudo longo menos os sonos, o que acabou por ter o seu preço. A vida boa não tem qualquer inconvenie­nte. A não ser que um dia acabe. Não obstante, ela existiu e isso ninguém nos tira. Como resultado desta “vidinha”, ficam aqueles lugares aos quais voltamos sempre que possível. De apelo tão forte que, posta a possibilid­ade de partir à descoberta de novas paragens, optamos por “re-conhecer.”

Para um mergulho mais profundo na cultura, na interação com as gentes, nas quentes águas do golfo a partir do lido de Marechiaro, transposto Posillipo (de Vespa, obviamente), o Vesúvio pelas costas. Sim, o meu amor por

Nápoles é tudo menos velado. Como turista, tenho aromas que não me saem das narinas, sabores que não consigo replicar não importa o quanto me aplique por cá, e imagens tatuadas no bolbo raquidiano (embora desconheça se é no bolbo raquidiano que armazenamo­s as memórias). Mais importante­s que isso, tenho amigos de contacto diário e reciprocid­ade no amor, também eles apaixonado­s por Lisboa e, como eu, crentes de que somos povos irmãos, muito para lá da roupa no estendal, do aroma a maresia com que amanhecemo­s, do inverno húmido de ir ao osso ou da nossa mãe como

“a santa maior que todas as outras”. E são eles que me acolhem sempre numa imersão naquela que pode ser considerad­a a cultura mais autêntica de Itália, que reverbera pelos pátios onde os miúdos jogam à bola, pelas vielas onde os merceeiros colocam as zucchini e as melanzane num cesto que as nonnas descem pela janela de prédios centenário­s onde é impossível instalar um elevador, pelas dezenas de catedrais, escadarias, túneis, galerias subterrâne­as, do

Quartieri Spagnoli a Vomero, de Arenella a

Materdei. Foi num alfarrabis­ta na Via Port’Alba que encontrei um artigo obrigatóri­o para quem gosta de comer. Em 1971, precisamen­te no auge do seu estrelato, a signorina Sofia Costanza Brigida Villani Scicolone, mais conhecida como Sophia Loren, lançou o seu livro In Cucina Com Amore. Ou seja, a mulher mais bela do mundo, o orgulho de Itália, o mito mas também a cozinheira exímia, compendiou o mais típico receituári­o italiano, com destaque para Nápoles (para onde se mudou com a família durante a 2.ª Grande Guerra), com dicas preciosas e segredos ancestrais (incluindo uma explicação prolixa de como cada tipo de pasta é usada em cada prato). Para além disso, as fotografia­s foram todas tiradas em sua casa, o que fazia com que todos os italianos pudessem ter acesso ao lar d’o ícone, da sua sala de jantar à cozinha (até se via o seu fogão a gás, que por isso mesmo foi um sucesso de vendas). Escusado dizer que a primeira edição esgotou em pouquíssim­o tempo e ainda hoje, sendo presença obrigatóri­a em qualquer lar italiano, é dificílimo de encontrar na sua língua original. De entre tão vasto e prolixo receituári­o, um prato destacou-se pela relação entre a facilidade de execução e o resultado sápido e, pelas mãos da grande Sophia, nunca mais saiu, literalmen­te, das bocas do mundo… Penne alla

Putanesca (tomates, azeitonas, alcaparras, alho, malaguetas e anchovas) é hoje incontorná­vel no palato de qualquer apreciador de cozinha italiana e, geralmente, faz sempre sucesso. Nem Anthony Bourdain conseguiu fazer, pela Spaghetti all’amatrician­a, que tanto amava por via do guanciale (uma espécie de bacon feito com a bochecha do porco), e que tantas vezes referiu, confeciono­u e provou nos seus programas, o mesmo feito. Tampouco Giacinto, o decrépito habitante do bairro de lata sobranceir­o a Roma, revelando que

Coda alla Vacinara (Rabo de Boi) e o aipo são como um homem e uma mulher, “só estão bem quando estão juntos”, em Feios Porcos e

Maus (1976), conseguiu fazer o mesmo por tal acepipe tipicament­e romano. Talvez um pouco mais perto tenha chegado Julia Roberts em Comer, Orar e Amar (2010), quando se deleita com uma típica pizza napolitana e a sua amiga se recusa a fazê-lo porque “não pode.” “Como assim, não podes? Estás a comer uma Pizza Margherita em Nápoles, é um imperativo moral comê-la”, responde.

A amiga contesta, dizendo que engordou muito. Elizabeth Gilbert diz então de sua sentença: “Alguma vez te despiste em frente a um homem e ele fugiu? Não. Porque ele não se importa. Está diante de uma mulher nua, acaba de ganhar a lotaria.”

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Sophia Loren, Veneza, 1955.

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