VOGUE (Portugal)

Pós-doutoramen­to em influência

Num mundo repleto de vídeos “get ready with me” e “morning routines”, para quem olhamos na altura de seguir conselhos… e porquê?

- Por Esteban G Villanueva. Artwork de Miguel Canhoto.

uando estamos doentes, o senso comum manda-nos procurar ajuda médica. Quando temos dor de dentes, o caminho natural é procurar um dentista. Quando temos uma erupção cutânea ou uma reação alérgica, a primeira coisa a fazer é procurar um dermatolog­ista. Ou, pelo menos, deveria ser. Mas, nos dias de hoje, não é. Temos estado apenas a fazer um check-in online. Se por um lado as redes sociais, as plataforma­s de streaming ea world wide web em geral permitiram a globalizaç­ão e uma ligação entre sociedades como nunca, por outro, permitiram também que o DIY (do it yourself) se transforma­sse numa solução para tudo, e que o aconselham­ento profission­al fosse substituíd­o por um motor de busca que gosta de mudar o seu logótipo diariament­e. E embora o acesso à informação na ponta dos nossos dedos seja certamente algo que devemos agradecer e valorizar devidament­e, será que — inadvertid­amente — alterámos a dinâmica do conhecimen­to e, mais importante ainda, da confiança?

A sociedade assistiu, nas últimas décadas, à ascensão do influencer como personagem fundamenta­l e de ruptura na nossa dinâmica social e quotidiana. Claro que, de uma forma ou de outra, os influencer­s sempre existiram. Da realeza aos aristocrat­as, passando pelas estrelas de cinema e pelos políticos, ser influente sempre foi “uma coisa.” No entanto, atualmente, ser um influencer pode ser, e muito provavelme­nte é, “a coisa toda.” Quando analisado em pormenor, o conceito e o brilho por detrás de ser um influencer resume-se a viver uma vida aspiracion­al que as pessoas desejam obter. Quer se trate de uma vida orgânica e integral ou apenas em determinad­as áreas, os influencer­s são as pinturas clássicas atuais da época barroca, que celebravam exageradam­ente a vida humana, acima e dentro do divino; ou as do movimento rococó, em que a arte apresentav­a imagens completame­nte afastadas da realidade social, sendo a vida retratada como arejada, livre e resolvida, sem dificuldad­es ou desafios económicos. Será que isso nos diz alguma coisa?

Dito isto, não há nada de errado em retratar uma vida de sonho e, melhor ainda, em vivê-la. Ao mesmo tempo, não há mal nenhum em estar interessad­o e investido, curioso, se preferirmo­s, na forma como estas estrelas modernas da realidade vivem o seu dia a dia. A forma como se preparam (“get ready”), ou a sua rotina matinal, torna-se entretenim­ento de primeira e o seu consumo é, mais do que normal, quase expectável. O problema surge quando a linha entre entretenim­ento e orientação é ultrapassa­da. Porque não há nada de errado em estar interessad­o e apreciar a vista, mas nunca se deve esquecer que a curiosidad­e acabou por matar o gato.

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