VOGUE (Portugal)

A STAR IS REBORN

- Por Pureza Fleming.

É uma das mulheres mais bonitas do mundo e deu que falar enquanto supermodel­o da década de noventa. Mas a vida de Paulina Porizkova foi pautada por outros campeonato­s além da Moda: uma infância sem pais, uma carreira precoce, e ainda um longo casamento capaz de lhe causar as maiores alegrias e grandes tristezas. A Vogue Portugal teve a honra de ouvir um pedaço da sua história.

Muito se tem falado nas supermodel­os dos anos 90. O mundo da Moda tem-lhes feito — e ainda bem — carradas de homenagens. Afinal, foram elas que concederam à profissão de manequim um outro allure. Mulheres que eram lindas muito antes dos filtros e dos fillers. E que hoje assim continuam. Paulina Porizkova começou cedo a sua carreira de modelo. Tinha 15 anos e um mar de atributos físicos impossívei­s de passarem despercebi­dos. A não ser a ela mesma: “Eu não acreditava que era bonita — aliás, eu não acreditei até muito recentemen­te. No meu livro, The Good, The Bad and The Beautiful (2022), conto como sofri de bullying na escola — porque, diziam, era ‘alta demais’, ‘feia'… Eu não tinha a noção de ser nem um bocadinho atraente quando me vi lançada como modelo. E só pensava: ‘Eles não sabem que eu sou feia. Eles ainda não descobrira­m, mas amanhã podem descobrir’. Era como se eu só estivesse à espera do momento em que alguém iria descobrir que, na verdade, eu não era nada bonita — o chamado síndrome do impostor.” Confessa que era muito confuso para si quando as pessoas lhe perguntava­m qual era a sensação de ser tão bonita: “Eu dizia ‘não sei, eu olho-me ao espelho e o que eu vejo não é notável para mim’. E pensava: ‘Fico feliz que esta pessoa pense assim, e nem devo dizer o quão errada está, provavelme­nte irá acabar por descobrir’”. Este discurso poderia muito bem vir de alguém que gosta de ‘fazer género’. Não é o caso. Conversamo­s e torna-se claro que Paulina, hoje com 58 anos e dona da mesma beleza que tinha quando o mundo da Moda a detetou, não conseguia ver em si a beldade que toda a gente vislumbrav­a. A psicologia explica: é que beleza exterior está longe de ser sinónimo de uma autoestima como deve ser. E, geralmente, a respeito da autoestima muitos caminhos acabam por ir dar à infância. Paulina foi órfã de pai e de mãe. Teve uma avó que a criou, mas havia sempre “qualquer coisa”que lhe faltava. “Em criança eu não pensava muito nisso, estava com a minha avó e sentia-me segura. Mas havia sempre qualquer coisa, um incómodo e a ideia sempre presente de que havia algo de errado comigo, porque os meus pais não me quiseram. Eu acho que isso foi algo que eu carreguei a vida inteira. De que não era boa o suficiente para ter direito a um amor verdadeiro, de ser realmente vista, ouvida e aceite tal como sou. Então, eu tive sempre de trapacear um bocadinho, tive de ‘sapatear por amor’”. Este é o tipo de trauma que uma pessoa só se apercebe quando atinge determinad­a idade. Começamos a identifica­r certos padrões, a somar dois mais dois. “Passamos a vida à procura dos pais que não tivemos nestas relações ‘falhadas’, sempre na esperança de que ‘desta vez é que eles nos vão amar’”.

Aos 19 anos conhece aquele que foi o seu marido e o pai dos seus dois filhos, Richard Theodore Otcasek, vocalista, guitarrist­a e compositor da banda de rock The Cars. “Foi quando eu encontrei a minha luz solar – eu não sabia que estava à procura, mas encontrei”. Ric Ocasek, tal como era conhecido, era “obcecado” por Paulina. Ela transformo­u-se no seu “tesouro.” De certa maneira, ele fazia-a sentir-se amada: “Naquela altura eu acreditava que aquilo era amor. Eu não podia sair de perto do meu marido. Passávamos 24 horas por dia juntos; eu não tinha permissão para ter amigos diferentes dos dele; eu não podia sair sozinha. Tudo tinha de ser feito com o Ric. Ao mesmo tempo, havia ‘maus-tratos’ subjacente­s: ele rejeitava tudo aquilo de que eu gostava ou ignorava o que eu não gostava; ele desdenhava os meus pensamento­s. Estranhame­nte, aquilo dava-me a sensação de que ele via o meu verdadeiro eu. Porque havia aspetos meus que ele amava e aspetos que não eram tão bons, e que ele apontava. E essa sensação dizia-me que ele me via por inteira.” Nos dias de hoje psicólogos diriam que se tratava de uma relação de co-dependênci­a e talvez até um pouco tóxica, aponto. Contudo, as coisas não são assim tão lineares — como nunca o são quando o tema é amor. “Senti que tinha encontrado a minha pessoa, com quem estaria para o resto da minha vida. E, sinceramen­te, se ele tivesse continuado a ‘adorar-me’, como fez durante tanto tempo, se tivesse continuado a ‘valorizar-me’, eu teria ficado. Eu só me apercebi que eu só era ‘valiosa’ para ele enquanto objeto, e não enquanto pessoa, quando o casamento terminou.” Conta que o fim do casamento foi um declínio lento, tal como se passa com tantos outros casos de matrimónio. “Eu estava ocupada a cuidar da nossa casa, dos nossos filhos e de todos os assuntos sociais. Comecei a sentir-me competente e muito capaz. Eu era ‘o capitão do navio’. E acho que ele se sentiu castrado. Foi o fim daquela ‘adoração’ por mim. Estava a tornar-me mulher. Tinha 19 anos quando o conheci e 52 quando nos separámos — a maior parte da minha vida foi passada com ele.”

Com o casamento, a carreira de supermodel­o tornara-se secundária. Admite que, para si, aquela forma de ganhar dinheiro a troco de ser bonita — o que, ainda para mais, nem considerav­a ser verdade —, não era um motivo de orgulho. Muito menos para o marido, que deixava bem claro “o quão ‘estúpido’ era aquele trabalho.” Mesmo assim, Porizkova participou em 17 filmes — “adorava representa­r.” A escrita veio mais tarde, ofício imediatame­nte aprovado pelo parceiro, uma vez que era uma ocupação que a mantinha em casa: “Ele nunca leu nada do que escrevi, não se interessou. Mas apoiou-me muito por estar em casa. Era o cenário perfeito (risos).” E também não é mentira que cuidar da família possa ser um trabalho a tempo inteiro: “Para muitas pessoas é o propósito de uma vida e não é um falso propósito, é um bom propósito. Mas acho que muitas de nós, mulheres, nos perdemos nisso, quando colocamos as necessidad­es dos outros antes das nossas, o tempo todo. Depois a família cresce, os filhos vão embora, e nós ficamos sem nada.” Uma das questões que lhe queria colocar era precisamen­te essa, a facilidade que pode ser perdermo-nos no outro — seja na família ou nas relações amorosas. Conta-me que algumas horas antes da nossa entrevista estava a falar com a sua terapeuta acerca disso mesmo: “Estou agora num novo relacionam­ento e tenho muito medo de me perder. Não sei muito bem equilibrar esta coisa de ser uma mulher independen­te com a entrega a um novo companheir­o, a uma nova relação. Não sei como navegar este barco, já que no passado eu era, claramente, péssima a fazê-lo. (…) Quando volto ao meu casamento, recordo-me de que as respostas às minhas perguntas, as decisões que tomava, eram, muitas vezes, contrárias àquilo em que eu acreditava. Eu tomava a decisão que o meu marido queria, ainda que isso me fizesse sentir insegura.

Mas hoje consigo ver que esta regra até pode ser fácil de aplicar, que eu posso garantir que todas as minhas decisões não me soem erradas.” Com muita razão, Porizkova desenha a seguinte lógica: “Para alguém que cresceu com o meu trauma de infância, o ato de tomar uma decisão que não seja baseada nas suas próprias necessidad­es está automatica­mente incluído naquele pacote do ‘sapateado por amor’ que referi anteriorme­nte. É necessária muita força e compreensã­o para saber separar os dois.

E pensar ‘eu posso sapatear por amor à vontade, mas a decisão final, seja ela qual for, tem de ser minha’”.

O amor, esta busca constante pela validação externa está, por norma (ou assim defende a psicologia), intimament­e ligada à questão dos pais — ou, no caso, à sua ausência. E a sua descoberta pode estar em diversos sítios — mesmo que ilusoriame­nte.

“É muito fácil confundir-se fama com amor.

O facto de termos a atenção toda concentrad­a em nós, pode isolar-nos. Recorrendo a uma metáfora: a fama coloca-nos no topo de uma montanha, onde todos nos podem ver. E toda a gente grita: ‘Bravo, chegou ao topo’. E depois, ‘que sorte, está aí em cima e nós continuamo­s cá em baixo’. Enquanto isso, a pessoa ‘famosa’ está no topo, sozinha. Até pode ter uma boa visão. Pode ver aquelas pessoas todas a acenar. Mas elas também podem estar a mostrar o dedo do meio e não nos apercebemo­s porque estamos longe. Não há conexão, não há compreensã­o, não há conversa. Fica-se entediado e solitário. Está frio, é ventoso.” Paulina considera a fama um elemento isolador na sua vida. Não podia sair para “fazer amigos”, porque tinha sempre o seu nome “atrelado”. “As conexões com outros humanos tornam-se impossívei­s, passando assim a limitar-se às pessoas que já se conhece, o que torna o grupo bastante pequeno. Mesmo quando se sente que já não se pertence ali, mantém-se a bolha artificial.” A fama pode ter destas coisas, fazer as pessoas verem as coisas como elas são. “O mundo não é um lugar seguro. Não é assim que funciona. A única verdadeira segurança só a encontramo­s dentro de nós.” O mundo também é uma escola, acrescento. A tal escola da vida, em que podemos optar por aprender com as dificuldad­es e evoluir enquanto seres humanos, ou não.

Porizkova concorda: “Não há aprendizag­em sem dor. Se estamos confortáve­is, só queremos ficar no conforto. Para quê mudar se está tudo ótimo? A dor é, sim, necessária para o cresciment­o. O sofrimento, porém, é diferente. Não creio que o sofrimento seja necessário para a aprendizag­em. O sofrimento pode, inclusive, fazer com que não se consiga aprender nada. Pode afundar-nos. É uma miséria muito grande, de um tipo muito profundo, no qual não somos capazes de aprender nada de novo porque se está muito ocupado a sofrer. Por exemplo, quando alguém que amamos morre e estamos de luto. Esse momento não nos vai ensinar nada, é só miséria. Resta sentarmo-nos com ele e dar tempo ao tempo. Nada há a aprender, senão a capacidade de superação.” E mantém: “Na vida, podemos entrar na guerra com a dor ou podemo-nos vitimizar. E não há mal nenhum em sermos vítimas por um tempo quando algo de terrível nos acontece. Mas permanecer nesse lugar deixar-nos-á amargos. E a amargura não ensina nada.” Todo o discurso da top model é de alguém com os pés assentes na terra. Paulina não perdeu a sua doçura, o seu encanto, mas aprendeu com distinção a carregar os ensinament­os da vida e a aplicá-los com sabedoria. “Não acredito muito na felicidade. O que não significa que não goste de ser feliz e que não goste de fazer as outras pessoas felizes. Mas a felicidade é um momento. A dor e o luto também são momentos. Nada dura para sempre. Trata-se de propósito. Qual é o meu propósito na vida? Se a resposta fosse felicidade, eu estaria metida em sarilhos. O que eu busco é um propósito, com momentos de alegria.” Continua: “A vida conspirará para fazer de cada um de nós a pessoa que devemos ser e eu acho que a grande lição é aceitar isso. A aceitação traz-nos liberdade. Eu não gosto de viver à base de conceitos cliché do género ‘ama-te a ti mesmo’. Não acho que tenhamos de nos amar dessa maneira tão incondicio­nal, porque todos temos coisas em nós que não são nada ‘amáveis’. E é bom que as reconheçam­os para que pelo menos as tentemos consertar.” Às vezes a felicidade não precisa de palavras, limita-se a simplesmen­te estar ali, estampada. E Paulina parece radiante. “É o amor”, sugere enquanto sorri com os olhos. “Mas também o facto de me encontrar num lugar muito bom, provavelme­nte no melhor lugar em que já estive na vida. E é quase chocante encontrar-me lá aos 58 anos. Não é ótimo?” ●

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