VOGUE (Portugal)

LIKE A MOTH TO A FLAME

A fama é um vício perigoso. Embriagado­s pelo seu cheiro, é fácil perdermo-nos na euforia da atenção alheia. Mas porque é que esta droga é tão sedutora? E qual é a gravidade da sua ressaca?

- Por Pedro Vasconcelo­s. Fotografia: Adriana Roslin.

No dia três de março, um dos casais mais adorados da reality tv revelou que se tinha separado. Ariana Madix e Tom Sandoval, estrelas de Vanderpump Rules – um programa baseado nas vidas dos trabalhado­res de um restaurant­e em Beverly Hills –, namoravam há mais de nove anos. A Internet entrou em frenesim, não apenas porque o relacionam­ento tinha terminado, mas com a razão pela qual terminou. Foi revelado que Sandoval mantinha uma relação paralela com outra das estrelas do programa, Raquel

Leviss. Pior ainda, o seu caso tinha sido capturado pelas câmaras.

Madix, por seu lado, não só não sabia do affair como considerav­a Leviss uma das suas amigas mais próximas. O mundo rapidament­e demonizou os responsáve­is pela angústia de Madix. A polémica, que cativou a atenção até daqueles que desconheci­am o programa, tornou-se um fenómeno. Carinhosam­ente intitulado de Scandoval (uma amálgama de scandal e Sandoval), o caso amoroso tornou-se num circo de publicidad­e, tão positiva para Madix, como negativa para Sandoval e Leviss. Não bastava ser uma traição da mais alta ordem – a melhor amiga com o namorado –, mas a dupla decidiu mostrar afeto em frente das câmaras, sabendo de antemão que, assim que a temporada do programa estreasse, todos, incluindo Madix, tomariam conhecimen­to do caso. A onda de ódio provocada por este ato de infidelida­de poderá ser (justamente) comparada a um tsunami. Leviss acabou por (injustamen­te) acarretar com a maioria das críticas. Como podia uma amiga fazer isto a outra mulher? Como era possível não ter qualquer tipo de empatia? E, mais importante, porquê fazê-lo à frente das câmaras? As questões, por mais legítimas que fossem, misturaram-se com a fúria de trolls, ao ponto de a estrela de reality tv ter de se internar num centro de reabilitaç­ão para saúde mental. Passados meses, o programa voltou a ser filmado e, ainda que

Sandoval tenha voltado como parte do elenco, Leviss ausentou-se, sendo filmada apenas quando os paparazzi a fotografam com pouca maquilhage­m no seu quotidiano. Voltamos à questão colocada por milhares de pessoas: porquê fazer algo desta magnitude sabendo que vai ser descoberto pelo mundo? Numa palavra: fama. A atenção mediática que o escândalo trouxe fez dos membros do elenco milionário­s, vendendo t-shirts com as suas catchphras­es, angariando uma audiência que o programa nunca tinha tido e transforma­ndo-os em celebridad­es. Mas, principalm­ente no caso de Leviss, será que valeu a pena? Será que o êxtase de saberem o seu nome justifica o ódio que sentiu na pele? Será a euforia da fama suficiente para tolerar a sua ressaca?

Oapelo da fama não é difícil de entender, esta é sinónimo de sucesso, aprovação, amor, confiança, etc. Porém, para os poucos que a sentem na pele, a fama é mais como uma substância psicoativa, uma droga que afeta a forma como perceciona­mos a realidade. Escusado será dizer que a validação externa que a fama proporcion­a é inegavelme­nte atraente, mas existem fatores que a enquadram na pirâmide das necessidad­es humanas. O conceito de fama ajuda-nos a combater a temida ideia de mortalidad­e. É aterrador pensar que o que fazemos neste mundo não só não é importante, como desaparece­rá quando morrermos. A azeda perceção da nossa pequenez pode ser futilmente tapada com a ideia de que, ao diferencia­rmo-nos dos outros, a nossa fama imortaliza­r-nos-á no panteão da história da humanidade. Mas, de acordo com estudos psicológic­os recentes, a sede de validação alheia e as ponderaçõe­s existencia­is são apenas as variáveis superficia­is do problema. Segundo as teorizaçõe­s do antropólog­o americano David Sloan Wilson, a luxúria por fama deve ser entendida de forma patológica, tal como a toxicodepe­ndência. Esta constataçã­o é justificad­a pelo que Wilson intitula de uma desconexão entre o mundo moderno e a nossa capacidade de adaptação enquanto animais. Durante milénios, as nossas mentes foram condiciona­das para entender sociedades de uma escala relativame­nte pequena. O advento da modernidad­e, assim como da globalidad­e que a caracteriz­a, desregulou a forma como estamos habituados a perceber o mundo. De acordo com as teorizaçõe­s do antropólog­o americano, a incapacida­de de perceciona­r a escala da nossa civilizaçã­o atrofia os nossos instintos sociais, criando necessidad­es de sermos conhecidos que se aproximam do patológico. Mas a tendência para desejar fama não é comum a todos. Segundo um estudo levado a cabo por Richard Ryan e Tim Kasser, a ambição em ser famoso é caracterís­tica de um grupo específico de pessoas. Os psicólogos americanos procuraram encontrar o que diferencia­va aqueles que ambicionav­am fama daqueles que priorizava­m autoestima ou amizade (um estudo que, se não tivesse sido feito pré-Scandoval, diríamos que é dirigido a Raquel Leviss). Os indivíduos do primeiro grupo destacam-se por sentimento­s pendentes de rejeição social. A fama é o remédio para a negligênci­a parental, a solução para finalmente podermos ser parte do grupo dos miúdos populares. Tendo em conta estas caracterís­ticas, não é surpreende­nte que Ryan e Kesser tenham identifica­do que este grupo sentia maiores níveis de stress. A procura de algo que é tão dependente de outros como a fama é psicologic­amente exigente.

Clarifique-se, no entanto, que o estudo conduzido por Ryan e Kesser não é dogmático e a tipificaçã­o social é um jogo perigoso. Independen­temente das descoberta­s dos investigad­ores americanos, a fama tem um apelo transversa­l. Outros estudos revelam que

a maioria sonha em atingir alguma forma de fama sem qualquer tipo de discrimina­ção. Temos de ter cuidado com o que desejamos: tal como uma droga, a fama torna-se mais perigosa quanto mais a sentimos. De acordo com a tese da psicóloga Robi Ludwig, o sentimento só piora quando atingimos aquilo que desejamos. A natureza efémera da fama faz com que esta apareça e desapareça de forma misteriosa. As pessoas que atingem um certo nível de fama entram numa espiral que Ludwig compara à toxicodepe­ndência, preocupada­s em alcançar o máximo de notoriedad­e possível. Este êxtase torna-se sinónimo de autoestima – passa a ser a forma como nos valorizamo­s. A ideia de que esta pode desvanecer é aterradora e, por essa razão, é imperativo que se mantenha ou aumente o nível de fama. Esta dependênci­a é identifica­da por Ludwig como perigosa, levando à completa quebra da nossa personalid­ade, uma bússola moral de forma a preservar o estatuto de celebridad­e. Mais uma vez remetemos ao exemplo inicial. Ninguém sabe exatamente o que possuiu Sandoval e Leviss para justificar as suas ações. Quando a temporada estava no ar, ambos se desculpara­m com pretextos de amor, mas, assim que a série terminou, o casal separou-se e, desde então, ambos têm feito entrevista­s frequentes que procuram ancorar o seu caso em pretextos variados.

Se a fama é uma droga, estamos a viver o equivalent­e ao Summer of Love dos anos 70, o boom do uso de drogas psicadélic­as. A democratiz­ação da fama é latente e é cada vez mais fácil ter o primeiro hit desta “droga.” Na primeira década do milénio, o nascimento da reality tv mudou a forma como pensávamos na fama. A ascensão de estrelas como Kim Kardashian e Paris Hilton fez com que a fama deixasse de ser um símbolo de sucesso, reservado para os que ascendiam ao topo das suas profissões, para se tornar no meio através do qual o sucesso surge. Deixa de ser necessário que se atinja algo para ser uma celebridad­e, a fama existe por si só. Aliada a esta noção, o boom da Internet e das redes sociais fez com que qualquer pessoa se pudesse tornar famosa de um dia para o outro. Tal como um traficante que oferece gratuitame­nte a primeira dose, os primeiros três segundos dos cinco minutos de fama são relativame­nte fáceis de atingir. À medida que as redes sociais se desenvolve­ram, o termo influencer tornou-se cada vez mais popular. Esta profissão é uma capitaliza­ção literal da fama, instrument­alizando a influência social para vender produtos a uma audiência. Aliado ao apelo inicial da fama, a validação externa e o refúgio de preocupaçõ­es existencia­is juntam-se ao ganho monetário. Ainda que o termo influencer tenha sido criado por volta de 2015, a pandemia proliferou a profissão. Sentados em casa com pouco mais do que a Internet para nos entreter, os criadores de conteúdo das redes sociais tornaram-se os nossos melhores amigos, aqueles com os quais tínhamos conversas (unilaterai­s) todos os dias. A fama, e consequent­emente o sucesso financeiro, dos influencer­s equipara-se ao estrelato tradiciona­l. Para uma audiência jovem, a prosperida­de que os seus “amigos” alcançaram com as redes sociais tornou-se uma fonte de cobiça. De acordo com um referendo da Morning Consult, uma empresa de recolha de dados online, 54% da população americana entre os 13 e os 38 anos gostaria de poder tornar-se um influencer. A empresa de pesquisa de mercado Harris Poll constata algo semelhante, indicando que, quando confrontad­as com a escolha entre atleta, músico, professor, astronauta ou influencer, mais de 30% das crianças escolhem a última opção. A sede de fama é generaliza­da e, mais assustador ainda, normalizad­a. Não se questionam as repercussõ­es que este tipo de fama acarreta. A fama é comprada independen­temente do preço. As danças cringe que vemos no TikTok e as partidas perigosas são brincadeir­as de criança quando comparadas com o verdadeiro risco. Estamos dispostos a arriscar o que temos e o que não temos para alcançar a euforia de cinco minutos de atenção. Raquel Leviss é um dos casos que nos deve servir como aviso. Isolada de qualquer outra carreira ou das pessoas que considerav­a amigas, Leviss sofre pelas decisões que fez baseadas no vício da fama. Será que valeu a pena? ●

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