VOGUE (Portugal)

Diego Armés, Chefe de Redação GQ

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Se as cartas de amor têm de ser, como alegava Pessoa, ridículas, então as boas histórias de amor devem ser impossívei­s. O amor que se concretiza está destinado a não mais que uma sessão de domingo à tarde num filme apanhado por acidente durante um zapping aleatório. De histórias de amor dessas está o inverno cheio. Normalment­e, chamam-lhes comédias românticas – é essa a expressão hipnótica que introduzir­am em nós sabe-se lá quando eque, quando lida ou ouvida, nos faz suspender a plausibili­dade e o bom senso, predispond­o-nos a aceitar, sem contestar, enredos lamechas e pouco credíveis. Por tudo isto, o filme de amor que mais me envolveu e comoveu tem como protagonis­ta um boneco metálico inanimado cujo criador deixou por acabar – ficaram a faltar-lhe as mãos – e que, por obra mágica, ganhou vida. Por vontade própria, fez das tesouras disponívei­s as suas mãos; por vontade de Caroline Thompson e de Tim Burton, foi descoberto por uma vendedora da Avon que o achou engraçadís­simo, tal como viria a achar a filha dela, Kim Boggs, personific­ada pela então doce e jovem Winona Rider, que se apaixonava de forma inesperada por Eduardo – e este por ela. Eduardo

Mãos de Tesoura (1990) é uma história de amor e um conto gótico de final infeliz protagoniz­ado por aquele que era, na altura, o casalinho mais bonito de Hollywood – Winona fazia de Kim enquanto Johnny Depp vestia a fatiota e enfiava as luvas afiadas de Eduardo (na altura, Depp tatuou no ombro direito “Winona Forever”, ajudando, no médio prazo, a elucidar o cidadão médio acerca da ilusão da eternidade no amor). O cinismo de todas estas consideraç­ões é fruto da idade e do azedume próprio de quem não se conforma com o ter chorado baba e ranho quando viu o filme pela primeira vez, há muitos, muitos anos. Mas no fundo, bem lá no fundo de mim, se eu vir nevar e imaginar que Kim Boggs observa, com ternura e nostalgia, as farripas de neve caindo lentamente, sei que me comovo e que também eu penso “lá está o Eduardo a fazer estátuas de gelo no jardim.”

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