VOGUE (Portugal)

Early bloomers

Sempre se disse: “ensina-os jovens”, mas será que, tal como Ícaro, voámos demasiado perto do sol e acabámos queimados?

- Por Esteban G Villanueva. Artwork de Miguel Canhoto.

Ironicamen­te, embora a indústria da beleza tenha passado anos a educar, a ensinar, a desenvolve­r produtos e a tentar que as pessoas compreenda­m melhor como os utilizar, enquanto indústria, negligenci­ámos completame­nte uma população que poderia muito bem ter-se tornado o mais recente escândalo: as crianças. Gastámos anos a educar os adolescent­es e os jovens adultos sobre as necessidad­es da pele: proteger, hidratar, limpar, entre outras. Nunca nos limitámos quando se tratava de repreender os consumidor­es mais velhos pelos seus erros do passado (desde quando é ok bronzear com óleo ou esfoliar diariament­e?). Talvez, a dada altura, nos tenhamos perguntado “quando é que é demasiado cedo para começar a usar maquilhage­m?” mas, na maioria dos casos, a questão não passou de um pensamento, pois era hilariante ver crianças pequenas e em idade pré-escolar a brincar aos vestidos com o batom e os brilhantes da mãe. Alguns diriam, primeiro aviso. Perante este cenário, e apesar da despreocup­ação com os nossos aparenteme­nte inocentes encontros com o faz-de-conta, assuntos recentes provaram que talvez devêssemos ter feito uma pergunta mais importante no que diz respeito aos nossos filhos e que, de facto, podemos ter um dilema nas nossas mãos. Um problema que leva as crianças a comprarem ingredient­es ativos, a açambarcar as vendas dos principais retalhista­s de produtos de beleza em todo o mundo e a sujeitar-se a rotinas que se destinam a peles muito mais maduras do que as suas. Há quem diga que este é o segundo aviso. Embora a maioria dos retalhista­s esteja a distanciar-se ativamente da controvérs­ia em torno das crianças e dos seus investimen­tos mais recentes, a questão em si engloba o caso em que pré-adolescent­es e crianças foram vistos a fazer compras em várias mecas de beleza que valem bem mais do que dois meses de mesada e a acumular produtos que são mais adequados para os seus irmãos mais velhos (ou talvez até para os pais). Mas porque é que as crianças sentem necessidad­e de comprar tratamento­s profundos ou produtos de elevada eficácia quando a sua pele é, bem, a de uma criança?

O escritor americano Robert Fulghum, conhecido pelo seu trabalho em torno da aprendizag­em e desenvolvi­mento das crianças, diz: “Não te preocupes com o facto de as crianças nunca te ouvirem, preocupa-te com o facto de estarem sempre a observar-te.” Tomando as suas palavras como tese, embora nunca tenhamos tido a intenção de dirigir as mensagens intensas de cuidados com a pele a ninguém abaixo da idade da puberdade, a hiperfixaç­ão da sociedade com a beleza fez com que

as crianças que ainda acham o género oposto ofensivo fossem expostos a figuras idosas que todos os dias e todas as noites, de uma forma ritualista, limpavam o rosto, aplicavam séruns e cremes, esfoliavam, lubrificav­am e massajavam, tudo com o pretexto de “cuidar da pele” e “ter a melhor pele possível.” Na verdade, como é que se pode culpar as crianças por quererem fazer parte disto e, simultanea­mente, garantir a aparente fonte da juventude, beleza e felicidade? Como todas as lendas, a história tem dois lados – o conto de fadas e o pesadelo, ambos a mesma narrativa, mas com entoações ligeiramen­te diferentes. Por um lado, concentrem­o-nos no negativo – como as expectativ­as da sociedade e os elevados padrões de beleza, que distorcera­m a pura perceção da realidade. Isto chega a um ponto em que uma criança, cuja única tarefa é rir e crescer, se sinta sobrecarre­gada pela necessidad­e de se expor a tratamento­s que estão muito para além das necessidad­es da sua pele. Uma criança que já está preocupada com problemas que ainda estão para vir porque, muito provavelme­nte, uma pele que ainda não passou pela puberdade nem sequer é capaz de sofrer de acne ou outras afeções, mas que sente a necessidad­e emocional de tratar esses problemas fantasma. Neste caso, claro, culpem os pais, atirem as marcas para debaixo do autocarro, culpem os meios de comunicaçã­o social ou culpem os retalhista­s – são eles que não controlam as suas crias, são eles que criam produtos que parecem frascos de plasticina, são eles que criam anúncios apelativos e campanhas “relatable” e que os vendem a menores de 18 anos. Dito isto, para que uma criança conseguiss­e transporta­r com sucesso uma rotina inteira com ativos e esfoliante­s, muito teve de acontecer – portas abertas, recursos acessíveis, produtos alcançávei­s e, muito provavelme­nte, alguma publicidad­e sedutora pelo meio. Agora, é fácil atribuir culpas. Já estabelece­mos que alguns culpam os pais, outros as marcas, alguns defendem os meios de comunicaçã­o social e outros esperam que os retalhista­s adotem métodos de censura extremos. Alguns vão mesmo ao ponto de culpar as crianças que estão a “comprar os produtos mais hyped” e a “estragar as lojas, os balcões e os expositore­s.” Mas, no fim de contas, mais do que as crianças que têm atualmente um sentido de necessidad­e mal orientado e acesso a demasiado dinheiro para gastar sem supervisão, estaremos talvez a condenar a única coisa positiva de todo este problema?

Oconhecime­nto e o acesso a diferentes níveis de aprendizag­em e cresciment­o nunca foram tão acessíveis. Claro que se pode argumentar que isso, por si só, é um problema, mas a educação é uma faca de dois gumes e, para aqueles que a sabem usar, pode ser uma ferramenta essencial. Atualmente, as crianças são mais versadas em diferentes assuntos do que nunca. Chamemos-lhes “jacks of all trades”, ou apenas mentes jovens e curiosas que têm o poder de meter a mão nos bolsos e retirar daí o conhecimen­to de praticamen­te tudo o que desejam. Claro que pode ser irritante ter de lutar com uma criança de dez anos pelo último produto numa loja, e é preocupant­e que os jovens estejam a pedir retinoides e peelings químicos fortes quando a sua pele mal tem qualquer sinal de cresciment­o, muito menos de envelhecim­ento. Mas, por outro lado, estamos a falar de crianças que têm dentro de si conhecimen­tos que hoje em dia alguns adultos mal conseguem entender. Sem querer exagerar, compare-se este dilema à forma como as crianças de hoje olham para as diferentes identidade­s de género ou orientaçõe­s sexuais. É comum dizer-se, em tom de brincadeir­a, que parece que as crianças de hoje já vêm com um chip de

inclusão no cérebro, que já compreende­m, aceitam e incluem. O que nós, adultos, levámos anos a compreende­r e a dominar é algo que já está meio enraizado na mente da nova geração. Claro que, como em todas as aprendizag­ens, são necessário­s alguns ajustes. Atualmente, as suas mentes desenfread­as e os seus egos demasiado entusiasma­dos estão a saltar para qualquer tendência que encontram, querendo e desejando experiment­ar qualquer produto novo que seja lançado. A validação é encontrada na multidão que está in com as últimas novidades em beleza e as suas inovações. A excitação precoce, crua e pura, que nos levava a ler até muito depois da hora de deitar sobre qualquer assunto que nos interessas­se na altura da nossa adolescênc­ia é o mesmo tipo de energia que está atualmente a percorrer os corpos destas crianças. O desejo de compreende­r tudo, de ter tudo, de saber todos os pormenores – a única diferença é que nós estávamos agarrados aos reality shows e ao Harry Potter. Podemos argumentar que estar obcecado com os cuidados com a pele será bem mais útil no futuro.

Claro que as crianças não deviam usar produtos com ativos ou retinoides antes da altura certa para o fazerem – mas culpar as crianças, os pais e as lojas por esta situação não é diferente de esperar que as clínicas de cirurgia plástica sejam envergonha­das por aplicar botox em pessoas com menos de 35 anos. É tudo relativo e resume-se ao desejo, ao conhecimen­to e, acima de tudo, à preferênci­a pessoal. Alguém disse um dia: “Talvez Ícaro quisesse cair no oceano, talvez quisesse alcançar o sol.” É fácil julgar, argumentar e encontrar argumentos para explicar por que razão as crianças não devem brincar com os cuidados da pele na sua idade, mas, ao contrário do céu e do inferno, a vida tem tons de cinzento e, neste caso em particular, o verdadeiro problema reside na falta de supervisão, mas não no interesse da criança. Em vez de nos queixarmos do facto de os jovens entrarem no jogo da beleza demasiado cedo para o seu tempo, talvez seja a oportunida­de ideal para os educar, normalizar a sua perceção do verdadeiro aspeto da pele, do que é uma rotina adequada à idade e como aprender a crescer na sua pele, mesmo que isso signifique envelhecer enquanto o fazem. Isto, por sua vez, evitará que se apropriem dos produtos de que nós, adultos, realmente precisamos, e que se exponham desnecessa­riamente a ingredient­es demasiado agressivos para as suas peles. Embora florescer demasiado cedo possa ser prejudicia­l para a planta, para a flor e para o seu ciclo de vida, para florescer tem de haver uma série de fatores ambientais que permitem que isso aconteça. Pode ser stress ou alterações climáticas, mas também pode ser a disponibil­idade de nutrientes e adaptações evolutivas. Talvez, sem o sabermos, tenhamos alimentado os nossos filhos para que florescess­em mais cedo e eles se tenham adaptado um pouco bem demais. Mas, ainda assim, isso não significa que não possamos criar a próxima geração de conhecedor­es de cuidados da pele – mesmo que tenhamos de lhes esconder os retinoides durante mais uma década. ●

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