O que é que a Sicília tem?
O historiador João Ferreira regressa a uma ilha especial que tem o que é preciso para atrair invasores desde os tempos mais remotos: fenícios, gregos, romanos, bizantinos, espanhóis, alemães, ingleses e americanos durante a II Guerra Mundial. E depois vi
AA minha Sicília era, à partida, a das colónias da Magna Grécia que ergueram o templo e o teatro de Segesta, a acrópole de Selinunte, o vale dos templos de Agrigento, os teatros de Siracusa e de Taormina. Era a dos caçadores de feras e das meninas em biquíni nos mosaicos romanos da Villa del Casale, em Piazza Armerina, dos mosaicos bizantinos de Monreale e da Capela Palatina do Palácio dos Normandos. Era, sobretudo, a Palermo das “Vésperas Sicilianas” – a ópera de Verdi que imortalizou a revolta de 1282 contra o ocupante francês – e do Leopardo, de Lampedusa e de Visconti, a Agrigento de Pirandello, a Taormina dos festivais de cinema e de todas as divas, desde Anna Magnani até Monica Vitti, passando por Claudia Cardinale. Era a Sicília dos meus heróis, de Garibaldi e dos Mil; dos soldados e camponeses de Libertação, de Rosselini; dos juízes Falcone e Borselino – e dos vilões das sagas O Padrinho e O Polvo. Foi essa a Sicília que encontrei. E muito mais. Tanto que vou ter que voltar. Visita obrigatória no coração da antiga capital do Reino da Sicília é o Teatro Massimo. No Padrinho 3 é naquela escadaria que a jovem Mary Corleone (Sofia Coppola), depois de ouvir o irmão cantar o papel principal da Cavalleria Rusticana, morre atingida pela bala destinada ao pai, Michael Corleone (Al Pacino), que ali mesmo dá corpo a uma das mais lancinantes cenas de dor da história do cinema. Essas escadas são, agora, o ponto de encontro dos turistas em Palermo. Nas ruas principais do centro histórico saltam à vista os palazzi decadentes, com fachadas que são uma pálida sombra da imponência de outrora. As cornijas acusam a passagem dos séculos e a acumulação de humidade, a pedra de alguns brasões está partida. Pesados portões de madeira estão fechados a cadeado. Um deles, na Piazza Bologni, ostenta uma placa: “Aqui descansou Garibaldi os seus membros exaustos, durante apenas duas horas, no dia 27 de maio de 1860.” Recorda os combates da insurreição de Palermo que acabou com a monarquia absoluta de Francisco II de Bourbon e abriu caminho à integração da Sicília na Itália. Felizmente, alguns desses palacetes da velha nobreza siciliana foram recuperados. Um deles, a dois passos do monumental cruzamento Quattro Canti, entre a Via Maqueda e a Via Vittorio Emanuele – com fontes e estátuas representando em diferentes fases da sua vida o rei Filipe III de Espanha (II de Portugal: o escudo português lá está, em grande destaque, sobre as armas reais) – foi convertido em hotel em 1892: é o Centrale Palace, fazendo gala em preservar os pormenores que fazem a diferença nos hotéis românticos que marcaram uma época. A poucos metros de distância, o B&B 4 Quarti funciona noutro palacete recuperado, construído em 1555 e ainda hoje propriedade da família Arone, cujo brasão, encimado por uma coroa de barão, está pintado numa parede da casa. O “quarto matrimonial”, com o teto de estuque trabalhado, uma tapeçaria com uma águia por detrás da cama, peças de majólica por toda a parte, parece um museu. Percorrendo os corredores, a todo o momento espero (receio) cruzar-me com Don Fabrizio, o príncipe de Salina imortalizado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa como “o Leopardo” e por Burt Lancaster no filme de Visconti, ou com Tancredi (Alain Delon), o tal que disse: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.” O baile em que este anuncia o noivado com Angelica (Claudia Cardinale) foi filmado ali perto, no Palazzo Valguarnera Gangi, na Piazza Croci dei Vespri. No 4 Quarti não há a Cardinale, mas há a descendente dos antigos senhores, jovem discreta com um indisfarçável porte aristocrático, cujos pergaminhos
Palácios outrora imponentes, memórias cinematográficas e ruas de alfarrabistas fazem parte das recordações
do historiador.