Neve? Qual neve?
QUEMVIVENAMONTANHATEMMEDODEQUEESTALHECAIAEMCIMAEPRECISADEVAZIO COMO DE PÃO PARA A BOCA. PROCURAM-NO SEMPRE QUE PODEM, QUANDO A NEVE DÁ TRÉGUAS E A ALTA MONTANHA SE REVELA E DEIXA DESCOBRIR TODO UM NOVO ROSTO. ANDORRA, VESTIDA DE VERDE DURANTE SEIS MESES, É O QUE AQUI SE PROPÕE. LONGE DOS ESQUIS, DOS BASTÕES, DAS BOTAS E DO VINHO QUENTE. ENQUANTO AINDA É TEMPO.
No andar superior da Casa Cristo, em Encamp, há um nicho. Era o esconderijo da arma da família. Era assim, em tempos tão idos que hoje são museu, nas casas do principado de Andorra: todas as famílias eram instadas a possuir uma arma. Não havia forças da ordem para lá do poder dos chefes de clãs. Hoje há polícia, mas continua a não haver exército no minúsculo território de 468 quilómetros quadrados. Minúsculo? Pois bem, é o que parece quando está sob um manto branco, a forma como a maioria o conhece. No inverno. No verão, na primavera e no outono, Andorra é um gigantismo de possibilidades. E uma delas é essa, descobrir que naquela casa do século XVIII Mercé e Florentina deixaram a arma quando decidiram fazer de vez aquilo que os andorranos fazem, todos os fins de semana: agarrar no medo de que a montanha lhes caia em cima e sair em busca do horizonte que fica além dos Pirenéus. Vão à procura do vazio. Foram, os da Casa Cristo, para além da fronteira que os punha em França. Era 1947.
Aquele pequeno museu à saída da Carrer Perdut pode ser o símbolo do principado e do esforço que o seu governo está a fazer para mostrá-lo de manto verde em vez de branco. Carrer Perdut é uma viela, perdida, de nome porquanto todos lá se perdiam, no núcleo histórico de Encamp, uma das sete paróquias (aqui concelhos) de Andorra. Empedrada como as paredes das vidas passadas, cobertas de lousa ainda brilhante dos anos, estreita como a história que, no inverno, se esvai debaixo da neve. Desemboca na Igreja de São Miguel, a mesma do retábulo que tem Judas e à qual falta o Sexto Mandamento no fresco do teto. «Não cometerás atos impuros.» Das duas uma, ou o autor era casto ou o contrário e ali, em Encamp, queria proteger o bem-estar sexual dos demais.
É uma das 44 igrejas românicas do principado, a maioria das quais, lá está, só abrem portas no verão. E constituem uma das rotas que o Turismo de Andorra quer ver calcorreadas entre maio e outubro, os meses verdes. Outra é a Igreja de Santa Maria, no Santuário de Nossa Senhora de Meritxell, a padroeira do país. Falta-lhe parte, ida num incêndio e que levou à construção do novo edifício, um hino à arte religiosa a coroar uma encosta verdejante. Outra ainda é a de Sant Joan de Caselles, em Canillo. Quem já foi esquiar para Grandvalira viu-a na margem da estrada, erguida. Dentro, jaz, se assim se pode dizer de algo pregado à parede, o que resta de um Cristo em reboco. Quase nada, um esboço em relevo, esburacado, metade de um corpo, um quase braço, descoberto
numa escavação, a adornar um espaço de recolhimento bucólico, no topo de uma colina. Verde.
Esta Andorra é apenas e só verde. Por todos os lados. Verde e luz. E é por isso que se transforma paulatinamente num paraíso das atividades ao ar livre. Gerard Martínez fez-se homem a correr verde acima e abaixo. Hoje, dirige a corrida de cem milhas (cerca de 170 quilómetros) considerada a mais dura da Europa, um desafio à medida de poucos, os ultras, a que chamou Ronda Dels Cims. «Queria mostrar a beleza das nossas paisagens. Queria, através das corridas ultras, ser um vetor de imagem para a região. Porque o nosso país tem uma reputação de destino tax free. Cigarros, álcool... Pensámos, eu e a minha esposa, que temos muito mais do que isso. Há a beleza das paisagens e a natureza e há sobretudo esta gente excecional.»
Gerard parece ter conseguido e isso dá-lhe um lugar de destaque na promoção turística apoiada pelo governo local. Neste ano, pôs a correr nas frondosas montanhas 3100 pessoas de 41 países de todo o planeta. E «ofereceu» ao principado o retorno de três milhões de euros, contas feitas às 20 mil dormidas que a festa implica e, porque mal também não faz, às compras tax free (até de equipamento) que muitos levam nas mochilas de corrida.
Aos habitantes – são eles os voluntários que apoiam as cinco provas do Andorra Ultra Trail Vallnord – deu a oportunidade de mostrar o que são, de braços abertos nos povoamentos históricos impecavelmente preservados e limpos (limpos, nunca será de mais dizê-lo, extraordinariamente limpos, um hino ao civismo e à vida em sociedade), com campanários centenários e flores. São treinados para motivarem os corredores, até nisso Andorra procura exceder-se. «Digo-lhes: têm três funções principais. A primeira é motivar os corredores, a segunda é motivar os corredores e a terceira é motivar mesmo os corredores.»
«Para quem vem da Europa a oriente, os Pirenéus não são tidos como a verdadeira montanha. Porque há os Alpes, antes. E esta corrida ajuda a provar o contrário, porque atrai elite. Não podemos concorrer com o monte Branco, mas queremos mostrar que a maioria do que se pode fazer lá também se pode fazer aqui», resume Enric Torres, responsável do Turismo de Andorra que sai do gabinete governamental, todas as noites do mês de julho, para acolher quem vem ao Cirque du Soleil. A trupe é residente em Andorra todos os meses de julho e já entrou no cartaz turístico, com 96 mil espetadores em 2015, 70 por cento deles turistas. Metade da capacidade da sala é gratuita e fica por baixo do palco onde se passa uma história escrita especificamente para a região.
Um dos pacotes turísticos de maior sucesso no verão é mesmo uma combinação hotel/Cirque/Caldea, conta-nos Enric Torres, atirando para outra das atrações andorranas
mais procuradas. Ainda que aberta durante todo o ano, a estância termal Caldea – a que se soma a vizinha Inuu, mais intimista – tem, no verão, a vantagem do clima que as montanhas oferecem ao vale de Andorra-a-Velha e às soalheiras piscinas exteriores a mais de trinta graus e com jogos de água sem fim.
A região de 76 mil habitantes acolheu em 2015 mais de 7,8 milhões de forasteiros. A imensa maioria continua a procurar a possibilidade de compras sem impostos e vem passar o dia. Foram 5,2 milhões no ano passado. Somam-se os 2,6 milhões de turistas que ficam, em média, duas a três noites no principado. A fatia mais grossa ocorre, obviamente, nos meses de neve – Andorra tem três domínios esquiáveis, Grandvalira, Vallnord e a estância de esqui de fundo que coincide com o parque Naturlandia. E que se transformam, de maio a outubro, em diversas zonas de atividades.
O BTT é uma delas, com dois parques (Soldeu-Grandvalira e Massana-Vallnord) que recorrem às infraestruturas dos desportos de inverno para transportar praticantes de BTT aos cimos de montes que são depois descidos em downhill. A aposta é tão forte que já por ali passaram campeonatos e taças do mundo.
Massana, a localidade mais dedicada às duas rodas, tem bicicletas a adornar a iluminação pública e lojas especializadas: as mesmas que alugam e vendem material de esqui de novembro a abril. Ao BTT somam-se três parques para famílias, Vallnord e Pal e o Family Park de Canillo, com lagos, cordas e descidas, e Naturlandia, um paraíso de animais de montanha em semiliberdade, ursos e lobos e outros habitantes habitualmente escondidos.
As estrelas do verão andorrano, contudo, não são nem a corrida nem o BTT. São o cicloturismo e o trekking. É impossível subir aos 22 passos de montanha do território sem cruzar dezenas – mais – de ciclistas em esforços invejáveis copiados, é verdade, de duas das maiores provas de ciclismo europeias: o Tour de France e a Vuelta espanhola. Ambas cruzam as altitudes de Andorra e são replicadas em provas organizadas no principado (a Volta Als Ports d’Andorra e a La Purito), além de constarem de uma extensa lista de percursos, servidos por 33 alojamentos adaptados a ciclistas.
Os ciclistas e os pedais são apenas suplantados, em número, pelos caminheiros que povoam as alturas, muitos deles pelos trilhos calcorreados pelos corredores das ultras. E aqui entra o cume de Coma Pedrosa, a quase três mil metros de altitude e onde nos cruzamos com Manuel Gonçalves e uma bandeira de Portugal. Subiu a pé, pela pedreira, três horas e meia desde Arinsal, para dar apoio ao Ultra Trail. «Todos estes picos altos que vê por aqui, já os subi a pé. Sozinho. Pego na mochila... Já dei a volta a Andorra toda. Só tenho pena de não ter descoberto isto mais cedo.»
É um dos mais de dez mil portugueses que vivem em Andorra – são 14 por cento da população. Onde quer que se pare somos respondidos com um jovial «olá». A volta que Manuel, de Braga, deu é a Grande Rota do país, 115 quilómetros de contorno que Andorra oferece para se cumprir em quatro dias, com 26 refúgios de montanha para pernoitar, quatro deles – Coma Pedrosa, Juclá, Sorteny e Illa – com guarda e restaurante e conforto. Num acesso de loucura, há percursos marcados para perto de 300 quilómetros de trekking. Haja pernas.
O que há dentro desses quilómetros? Vales glaciares perfeitos, mais de 70 lagos de silêncio e vida selvagem, riachos nervosos, as bordas, tradicionais casinhas de pedra e madeira, primavera todo o verão, flores nas pradarias, altitudes atrás de altitudes e, desde julho, o miradouro de cristal de Roc del Quer, pendurado a 500 metros de altitude sobre os telhados de Canillo. Sem neve e, admitamo-lo, bem mais belo. E não nos parece que montanhas de tamanha pureza nos possam cair em cima, não.