Volta ao Mundo

Paira ainda uma aura de opulência e elegância, de glórias e tragédias, de amores e desamores.

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É uma casa temperamen­tal: ora alegre e cheia de vida, ora tristonha e sombria. No Ramalhete, em tempos ponto de encontro de distintos cavalheiro­s,

Suicídio, incesto, morte por desgosto. Se estas paredes falassem, teriam escrito todo um romance trágico, em torno das glórias e infortúnio­s do clã Maia, família da alta aristocrac­ia lisboeta que durante boa parte do século XIX habitou o casarão. Diz-se até, à laia de lenda, que esta casa sempre foi fatal aos Maias, como se o edifício tivesse algum efeito perverso sobre os seus inquilinos. Quando, na verdade, ele próprio absorve o estado de espírito de quem o habita, espelhando-o em detalhes como a cascatazin­ha do jardim – que ora seca, ora brota abundante e deliciosa, ora chora – e a estátua de Vénus Citereia, que tanto está enegrecend­o a um canto como depois parece chegada de Versalhes.

O palacete, de aspeto tristonho de residência eclesiásti­ca, fica na Rua de São Francisco de Palma, na paz dormente do bairro das Janelas Verdes. Desconhece-se o número de porta, mas basta perguntar pelo Ramalhete, que ali toda a gente sabe onde fica. O nome vem do painel de azulejos com um ramo de girassóis que ocupa o lugar de brasão de armas.

O interior, de disposição apalaçada, destaca-se pelos tetos apainelado­s, pelas paredes cobertas de frescos, e pela invejável coleção de arte que recheou as suas salas e corredores. « Chic a valer», terá dito um dos muitos visitantes que desta casa faziam salão, nos serões da Lisboa oitocentis­ta. A frase tornou-se emblemátic­a, a par da fama de casa-museu. Entre outros tesouros, ali se podiam admirar tapetes persas, jarrões da Índia, um quadro de Greuze, outro de Rubens, e o retrato de uma familiar pintado por Constable.

Além do jardim, sítio agradável quando a vida corre de feição aos residentes, quem lhe calhar em sorte ser convidado a entrar no Ramalhete deve fazer os possíveis por espreitar também o escritório, cheio de detalhes encantador­es, a faustosa sala de jantar e o laboratóri­o médico de Carlos da Maia, um perfeito e intacto exemplar de época. E, de caminho, demorar-se no fumoir, a sala mais cómoda do palácio, com otomanas que apresentam a fofa vastidão de leitos. Entre tanta opulência, é fácil dar pelos pensamento­s a vaguear em torno dos jantares faustosos, das jogatanas de whist, dos recitais de piano, dos longos serões passados a discutir política, literatura e as tricas da alta sociedade. Ah!, se estas paredes falassem…

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