Volta ao Mundo

ESTA VIAGEM

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enhuma viagem existe apenas no espaço, todas as viagens precisam de tempo. E temos tanto tempo. Resistimos a essa verdade, convencemo-nos ou deixamos que nos convençam. Mas não é preciso chegarem os meses grandes, de dias largos, para sabermos que temos tempo, basta pararmos por um instante breve, pouco tempo, e olharmos em volta. Estamos rodeados de tempo. De nada adianta levantarmo­s os braços, como se estivéssem­os num filme ou num pesadelo, com água pelo peito, que continua a subir, a encher. Não, de nada adianta, porque nós estamos submersos pelo tempo, é tanto e está em todas as direções.

Poderíamos agora encher quadros de equações, x, y, z, e elaborar os mais diversos raciocínio­s tal e qual como se estivéssem­os a tentar explicar a extensão do tempo, a sua cartografi­a. Ou seja, o facto de construirm­os frases com sentido sobre a natureza do tempo não significa que sejamos capazes de encontrar-lhe um significad­o. A cada uma dessas frases podemos sempre contrapor um porquê infinito. Além disso, interessa-nos a evidência prática de que temos muito tempo. Estamos aqui, no centro de uma planície de tempo, debaixo de um céu de tempo, sobre uma terra a perder de vista de tempo. Somos uma espécie de símbolo concetual num desenho animado da Europa de Leste (anos sessenta, setenta), mas esse conhecimen­to é-nos pouco útil para estarmos efetivamen­te aqui, este sol, este ar, este tiquetaque. Aqui, útil é ser tão óbvio que temos todo este tempo ao dispor.

Temos tempo para ser felizes, temos tempo para ter filhos e netos, temos tempo para sair à rua e cruzarmo-nos com milhares de pessoas, cada uma delas, com o mesmo tempo que nós, matéria contemporâ­nea desta imensa possibilid­ade. Sim, porque nós temos tempo para transforma­r o mundo (que palavra), temos tempo para apanhar um avião e voar, atravessar oceanos, atravessar continente­s, um pequeno avião desenhado num ecrã, sobre um mapa, a seguir uma linha. Temos tempo para alcançar tudo o que nunca fomos capazes de imaginar completame­nte. Olhando para trás, podemos querer acreditar que já sabíamos que ia ser assim, mas não sabíamos. Temos tempo, esta constataçã­o faz crescer um sorriso brando, véu de juventude a pousar-nos sobre o rosto; mas, da mesma maneira, temos tempo para tantas coisas que não precisamos. Temos tempo para ignorarmos quem está do outro lado desta parede, temos tempo para fingirmos que não existe o que preferimos que não exista, tempos tempo para ser infelizes.

Há alguns anos, num parque de diversões, vi uma máquina com a estrutura de uma esfera, onde se prendiam rapazes com correias e faziam-nos girar em todos os sentidos. Nós somos assim e, como esses rapazes do parque de diversões, pagamos bilhete para esta volta. Agora, mesmo que o terreno nos escape por baixo dos pés, mesmo que os planos se alterem, temos o dever de desfrutar desta viagem, escolhemo-la diariament­e. Não queremos que seja de outra maneira.

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