Jornal de Negócios - Weekend

A vodka do ditador

Por cada grau de erro tinham de beber mais uma dose de vodka. Era o caminho para o “in vino veritas” e já lá vou.

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Convido-vos ao pesadelo. Venham sentar-se à mesa com Estaline. E preparem-se para um dilúvio de vodka. Sim, calcem os confortáve­is sapatos de Churchill ou as rústicas botas de Khrushchev: ambos passaram por essa dura provação, os pratos a sucederem-se, sopa, peixe, galinha, caça, cordeiro ou cabrito, tudo banhado, como o Atlântico banha da Europa à África, passando pelas três Américas, por um agreste oceano de vodka. Será a garrafa o diferencia­l de cada ditador? Salazar, uma cálida manta sobre os joelhos, bebia o seu vinho tinto e estava na cama à meia-noite, já feitas as orações da noite. A essa hora ia Estaline nos primeiros brindes, toda a mesa levantada, a virar copos de vodka, ritual que os convidados tinham de suportar até às cinco da matina. Venham, vamos todos à datcha de Estaline, em Kuntsevo. Olhem para a sumptuosa mesa na sala de jantar. Daqui, desta mesa, é que se governava a Santa Rússia, jurou Molotov, ministro dos Negócios Estrangeir­os, na verdade um dos mais íntimos companheir­os do ditador georgiano. Os convivas tinham de passar por um bizarro desafio, a prova do termómetro. Ali, no ameno calor da sala, tinham de adivinhar que infernal temperatur­a estava no gelado exterior. Por cada grau de erro tinham de beber mais uma dose de vodka. Era o caminho para o “in vino veritas” e já lá vou.

Cada jantar era um eterno retorno à iniciática prova juvenil de virilidade: aguentar a vodka como um homem. Era também um teste de sobrevivên­cia: se no vinho está a verdade, Estaline procurava a “veritas” dos seus convidados na vodka, na ânsia de lhes soltar a língua e descobrir um enredado complô, uma pequena traiçãozin­ha que fosse. No gargalo de cada garrafa de vodka desenhava-se a hipótese de um longo, gélido e mortal degredo na Sibéria ou a clemência de um fuzilament­o rápido. Cair bêbado, cabeça enfiada no prato, era a desgraça para o incauto conviva, garantiu Khrushchev, que sabia do que falava.

A vodka não será a essência da dilacerada e transparen­te alma russa. Mas na Guerra Mundial, quando os nazis ameaçaram conquistar essa imensa e grandiosa terra-mãe, a vodka aqueceu os resistente­s homens e máquinas. Para cada soldado da frente havia uma ração diária de 100 ml de vodka. Mas o horrível Inverno, essa desolação branca, altíssima muralha de gelo e neve que cercava os exércitos, obrigou os generais soviéticos a desviar a vodka para os carros de combate: à falta de anticongel­ante, misturavam vodka à água dos radiadores para manter os tanques a ronronar. Só os heróis, os que loucamente se destacavam em combate, tinham a ra-* ção diária. Eis o que aumentou ainda mais a generosa combativid­ade de soldados cuja expectativ­a de vida, em Estalinegr­ado, era de umas singelas 24 horas.

Volto ao ditador. Era cambuta, como em Luanda se chamava a um homem pequeno, apenas 1 metro e 65, menos três centímetro­s do que o anafado Churchill, longíssimo dos quase dois metros do general De Gaulle, para falar de dois convivas que ele arrasou em banquetes. Como era possível, interrogou-se De Gaulle, que aquele sólido meia-leca se tivesse levantado 30 vezes para brindar no jantar que lhe ofereceu em Moscovo? E lembro, a cada brinde bebe-se o cálice de vodka que, depois, se volta, boca do copo para baixo, para mostrar que nem uma gota pinga sobre a toalha. Cada gota derramada, além de sinal de fraqueza do bebedor, é um augúrio de terríveis desgraças futuras. Eis o truque do ditador: Estaline fazia batota, a sua vodka vinha cortada, meio-meio, com água, o que também fazia com o vinho. Tal qual os radiadores dos tanques soviéticos.

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D.R.

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