Jornal de Negócios - Weekend

Os dias da nossa glória

O meu neto faz-me pensar nos poetas da minha juventude, ou não fossem os dias da nossa juventude também os dias da nossa glória.

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Há-de vir o Verão e o meu neto fará então 3 anos. Agora, fala muito, repete, recria, e inventa com uma liberdade que faz sorrir a gramática. Corrijo: a gramática fica vaidosíssi­ma com as surpresas e prendas que a linda boca dele lhe dá. O meu neto faz-me pensar nos poetas da minha juventude, ou não fossem os dias da nossa juventude também os dias da nossa glória, como num verso nos ensinou Byron. Não me falem, por isso, dos grandes nomes da História. E é o que eu prometo ao meu neto: falar-lhe só dos poetas da minha juventude. Dir-lhe-ei que veio uma revolução e o avô deixou-se ficar, sozinho, sem pai nem mãe, ao Sul e ao Sol, em África, na cidade do Lobito, cuja bela perna esquerda era uma sedutora e erotíssima restinga, em sussurro sobre o mar para que o oceano deixasse em sossego a feminina baía onde vinham, de terras longínquas, descarrega­r os grandes navios. O avô, dir-lhe-ei, alugou um tê zero, mesmo ao lado do Terreiro de Pó, do qual a única decoração eram folhas de papel com versos dos jovens poetas que, como agora o meu neto, faziam corar de vaidade a língua portuguesa. A poesia chegou primeiro, os tiros, as rajadas de AK, os “rockets” chegariam depois. Mas antes dos corpos mortos, houve os corpos vivos. E a palavra corpo prevalecia, juvenil, sobre todas as outras. “Da grande página aberta do teu corpo/sai um sol verde” era um verso de Ramos Rosa, talvez o mais representa­do nas cem folhas de papel – uma citação em cada – que atapetavam as paredes.

Nunca conheci Ramos Rosa, e quando encontrei outros poetas que se derramaram por essas paredes de Sol, Sul e sal, como foi o caso de Gastão Cruz e de Nuno Júdice, só em timidez e silêncio os saudei. Como poderia dizer a Ramos Rosa que ali estavam, a vinte metros e meio da guerra civil angolana, pespegados numa parede estes versos: “Boca para ler para abrir e devorar/pernas para lamber fluindo como as colinas do olhar” ou “boca para lábio a lábio língua a língua ler” ou ainda “púbis para a espiga alta e pulsante soluçar”. A Ruy Belo fui buscar “as últimas crianças demorando a voz”, sabendo que nelas “nasce o fruto mais insólito nos lábios”.

E o que eu quero dizer é que esses versos e esses poetas da minha juventude eram, no torvelinho emocional da minha cabeça, mais do que versos e do que poetas. Eram a vida, o meu programa de vida. Nenhuma imagem me deu saudade um tão feridíssim­o conhecimen­to como, de Gastão Cruz, este verso: “É tão cedo por vezes que Lisboa/estende sobre os corpos o desgosto/Com os de-* dos no crânio despedimo-nos.”

Quando, de Nuno Júdice, copiei para a parede, logo à entrada, este verso, “dentro de séculos serei um paralelepí­pedo côncavo,/ dentro de milénios também eu serei uma Pirâmide” era a aceitação do esquecimen­to, esse outro nome da eternidade, que colava com patex à parede, o que confirmei com Ruy Belo: “A morte é a verdade e a verdade é a morte/ao homem não foi dado nenhum outro dia/e a vida é qualquer coisa como nunca mais chegar.”

Mas nada me rasgou tão ao meio e me estragou gloriosa e tão bem para a vida como os versos de Herberto, no esplendor retórico dos seus primeiros livros. Na “Vocação Animal”, e eis o que direi ao meu neto lá mais adiante, tomei conhecimen­to da “arte do devagar”: “Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder – aprendi devagar.” Lição de tão intensa e humilde humanidade que até Herberto suavizaria esses versos de 1972 em futuras edições da “Poesia Toda”. Mas esta visceral e gloriosa versão é a que guardarei para o meu neto.

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Mariline Alves

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