Os intelectuais que vieram ver a revolução
Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Marguerite Yourcenar, Heinrich Böll. O 25 de Abril tornou Portugal um polo de atração para os grandes intelectuais da época. Muitos quiseram ver a Revolução dos Cravos de perto e falar com os portugueses. Lisboa e Porto tornaram-se cidades fervilhantes do ponto de vista da discussão de ideias em conferências, colóquios ou em jantares privados e tertúlias com nomes sonantes. Muitos desses grandes pensadores e escritores estrangeiros ficaram deslumbrados com o que encontraram, outros saíram do país desiludidos.
Osalão estava cheio. Já não restavam lugares sentados, por isso havia pessoas sentadas no chão. Alunos e professores da Faculdade de Letras da Universidade do Porto esperavam ansiosamente ouvir o grande filósofo francês Jean-Paul Sartre. Estávamos no início de abril de 1975. Poucos dias antes, tinha sido a intentona do 11 de março. O país fervilhava. Estava em andamento o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que pôs em marcha a nacionalização de vários setores, a expulsão de inúmeros patrões e gestores de empresas, e a ocupação de herdades por camponeses. Tudo isso interessava Sartre. “Ele estava numa fase muito ligada ao maoismo. Veio para entender a revolução e ver novas possibilidades do progresso revolucionário. Dizia que o caso português tinha sido uma lição para o mundo”, recorda Arnaldo Saraiva, na altura professor assistente naquela faculdade e um dos responsáveis pela vinda do filósofo ao país. Numa conversa com Jacques D’Arthuys, então diretor do Instituto Francês no Porto, surgiu a ideia de trazer Sartre a Portugal. “Soubemos que ele gostaria de vir ver o clima da revolução. E o Jacques D’Arthuys, que pertencia a uma família aristocrática e tinha muito poder no Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, pôs-se em campo”. Não só veio Sartre como também a companheira, Simone de Beauvoir, romancista e ensaísta, e um ícone do feminismo. Naquele dia, Arnaldo Saraiva apresentou o filósofo ao auditório. Mas ele não vinha para falar, “vinha para ouvir”. “Toda a gente estava à espera da palavra ‘sagrada’ dele. Mas Sartre dececionou completamente porque falou pouco e disse coisas que, de alguma
maneira, já sabíamos.” No breve discurso que fez, defendeu a autogestão das empresas que considerava ser uma contribuição do proletariado industrial para o processo de luta pelo socialismo e “insistiu sobre a necessidade de mudar aquilo a que chamava a ‘democracia burguesa’”.
Talvez a assistência estivesse à espera “de palavras de ordem, soluções definitivas, ou caminhos muito claros a percorrer”. Mas o filósofo disse que, “feita a revolução, era preciso ir devagar e ter cuidados”. Apesar de, ao tempo, estar muito influenciado pelo maoismo, “ele era um homem democrático, um intelectual que prezava a democracia”, sublinha o académico.
Na assistência, além dos estudantes, estavam intelectuais como Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues e José Augusto Seabra. Quem não gostou nada do que ouviu, sentado numa das primeiras filas, foi Carlos Magno, então aluno da Faculdade de Letras. Por isso, decidiu sair “ostensivamente” a meio da conferência. Estava “horrorizado com os disparates que ele estava a dizer”, recorda o jornalista. “O Sartre veio aqui já no auge do período revolucionário, fazer um apelo à radicalização”. É assim que o jornalista resume a visita do filósofo ao país.
A verdade é que “eu não tinha grande respeito intelectual por ele”, admite. “Nunca gostei daquele lado maoista do Sartre, a defender a revolução cultural chinesa”. Mas não esconde que talvez essa aversão tivesse a ver com o facto de, à época, em que era um jovem estudante de filologia germânica, estar perto da linha ideológica comunista. Naquela altura, “havia uma grande divisão entre o PCP e os maoistas”. Magno foi à conferência porque também estava a fazer cadeiras a filosofia e história. E, para todos os efeitos, Sartre “era um mito”. O existencialismo “marcou muito diversas gerações”. Apesar de tudo, “era um intelectual francês de referência e um grande pensador do século XX”.
Esta não era a primeira visita revolucionária do francês. Nos anos 1960, já tinha estado em Cuba, com Simone de Beauvoir, André Malraux e com o jornalista italiano Giangiacomo Feltrinelli. “Eles é que trouxeram de lá a célebre fotografia do Che Guevara, feita pelo Alberto Korda”, conta.
Para Carlos Magno, o filósofo francês veio a Portugal “sobretudo com o objetivo de educar os soldados, educar o Movimento das Forças Armadas (MFA)”, porque achava que “não eram suficientemente revolucionários, que eram ‘burgueses’, como se dizia na altura.”
O francês terá ficado desiludido com os estudantes portugueses, admite Arnaldo Saraiva. Ao colocar perguntas à assistência, tais como: que relações têm os estudantes com a revolução? Até onde querem ir? Querem caminhar no sentido de uma sociedade socialista, ou querem parar a meio caminho e ficar-se pela democracia burguesa? Ficou sem resposta.
Talvez as circunstâncias não tivessem ajudado. A sala apinhada não facilitava o diálogo. E, perante, um mito da filosofia, como era Sartre, houve poucas intervenções. Os alunos terão ficado inibidos.
Simone de Beauvoir, companheira de Sartre, teve outra agenda no Porto. Era conhecida em Portugal sobretudo pelo ensaio “O segundo Sexo”, publicado em 1949, uma obra essencial do feminismo. Falou numa outra palestra na Faculdade de Letras onde as mulheres se destacavam na assistência. Ao lado, tinha Isabel Pires de Lima, na altura uma jovem de 21 anos, professora assistente da faculdade.
“O feminismo estava na ordem do dia na Europa, nos Estados Unidos e em Portugal também, pelo impacto que o caso das Três Marias teve entre as jovens universitárias”, recorda a antiga ministra da Cultura. [As escritoras Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram julgadas em tribunal em 1973 por terem escrito um livro considerado pornográfico e atentatório da moral pública e bons costumes, intitulado “Novas Cartas Portuguesas”.]
É preciso recordar o contexto em que as mulheres viviam. “A pílula tinha acabado de chegar a Portugal”, recorda. E não estava ao alcance de todas. Esse acesso à contraceção foi “um passo de gigante na emancipação feminina”.
Isabel Pires de Lima teve oportunidade de privar com a escritora francesa quando lhe fez uma entrevista para a RTP. Percebeu que era “alguém muito assertivo e que transmitia uma energia combativa”. Nesses momentos a sós, antes de a câmara ser ligada, Simone de Beauvoir “fez-me algumas perguntas sobre o sistema de ensino universitário”, mais propriamente “sobre a presença feminina na universidade”, e também quis saber se em Portugal “existiam movimentos organizados de mulheres”.
Naquele ano de 1975, as Nações Unidas tinham decretado o Ano Internacional das Mulheres. Na entrevista, começou por perguntar-lhe o que pensava dessa iniciativa. “Parece-me uma medida antifeminista porque da mesma maneira se podia fazer o Ano do Cão, ou o Ano do Cavalo. É um ano que o homem concede a uma das suas propriedades, nada tem a ver com um verdadeiro avanço em relação às questões femininas. […] Em si, a noção de um dia internacional da mulher é absolutamente contrária à ideia de uma igualdade completa de condições entre o homem e a mulher, que é o princípio do feminismo”, respondeu a escritora.
Isabel não ficou surpreendida com as respostas, porque “as posições que foi defendendo estavam todas elas já explanadas no ‘Segundo sexo’”.
O FASCÍNIO PELA AUTOGESTÃO E UMA G3 NA MÃO
Quando Sartre se estava a despedir do Porto, Arnaldo Saraiva fez-lhe uma breve entrevista também para a televisão, em que lhe perguntou o que mais o tinha interessado naquela visita. “Foi ver a fábrica autogerida Sousa e Abreu”, respondeu. Tratava-se de uma empresa têxtil à beira da falência, em Guimarães, que tinha sido ocupada e salva pelos trabalhadores. Também lhe perguntou se ia escrever alguma coisa sobre o que tinha visto em Portugal. Prometeu que sim. “Mas acho que nunca escreveu”, diz entre risos.
Antes, Sartre tinha estado em Lisboa, onde teve contacto com vários elementos do MFA, fez uma conferência no Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional e visitou o RAL1, onde decorreram os acontecimentos de 11 de março. Ficou célebre a fotografia em que está rodeado de militares a segurar uma G3. O Diário de Lisboa de
29 de março de 1975 descreve essa visita desta forma: “Como o não esperassem, tocou à campainha, disse quem era, aguardou que a sentinela fosse informar o sargento da guarda e que este por sua vez comunicasse com o oficial de dia. Cumpridas as formalidades da praxe, entrou e confraternizou durante um bom pedaço com os militares, personagens, como ele disse, do ‘facto mais surpreendente e comovente’ do Portugal de hoje”.
Sartre estava acompanhado. Com ele estavam Serge July, diretor do jornal Libération, e Pierre Victor, dirigente maoista, que foi um dos três autores – juntamente com Sartre e Philippe Gavi – do livro “Porquê a Revolta?”. Essa obra foi publicada em França em 1974. Quando se dá o 25 de Abril, é preparada uma edição portuguesa, que foi publicada em 1975. “Eles prepararam um prefácio especial para essa edição, que começa assim: Vais a Portugal na Páscoa? Como é que reagiste aos acontecimentos de 25 de Abril?”, refere António Pedro Pita, professor catedrático de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que estudou a obra de Sartre.
De certa maneira, “podemos dizer que esta viagem de Sartre a Portugal foi preparada” já desde finais de 1974. “Era uma viagem importante para ele”. Interessava-lhe ver “como é que os cidadãos estavam a agir neste contexto da revolução”. Eram, efetivamente, participantes? Até onde ia essa participação? Ou será que se limitavam a assistir a alguma coisa que era feita pelas Forças Armadas? No fundo, diz, ele queria perceber, “nessa transformação de um golpe de Estado em revolução, qual era a parte das forças armadas e qual era a parte do povo.”
Isto porque “a liberdade é talvez o tema central de toda a sua obra”. E, “em todos os momentos revolucionários, a liberdade acabou por ser, de certa forma, frustrada ou limitada”. Essa é outra das razões que o traz a Portugal – perceber “até onde vai esta possibilidade de transformação radical das pessoas pela liberdade”.
Numa conferência de imprensa, na Casa da Imprensa, Sartre não poupou criticas aos jornais portugueses. Considerava que não interpretavam os factos. Simone de Beauvoir também lá estava. “Eles estavam aborrecidos com tudo. Quando começaram a ouvir os revolucionários portugueses, começaram a ficar um bocado dececionados”, recorda o jornalista Fernando Dacosta, que esteve presente nessa conferência. No RAL1 “puseram-lhe uma espingarda nas mãos” e “acho que ele não gostou nada disso, foi forçado”. Sartre e Simone “eram pessoas inteligentes” e “perceberam que estavam a ser utilizados por uma certa esquerda folclórica e radical”.
Mas, naquele tempo, “Portugal era uma espécie de Jardim Zoológico, onde vinha toda a gente ver o que se estava a passar nesta revolução feita por militares, que era um bocado extravagante”. Nomes como a belga Marguerite Yourcenar, autora de “Memórias de Adriano”, os franceses Alain Touraine, Jean-François Revel ou Jean Daniel, mas também italianos, alemães, sobretudo militantes e simpatizantes das várias correntes da esquerda europeia. O alemão Heinrich Böll, prémio Nobel da Literatura de 1972, também esteve cá, assim como o seu compatriota Hans Magnus Enzensberger, poeta e ensaísta, que escreveria mais tarde, já em 1987, um ensaio sobre a sua experiência em Portugal intitulado “O prazer de ser triste”.
Porquê todo este interesse por Portugal? “As pessoas tinham ficado excitadas com o Maio de 1968. E, de repente, para quebrar a pasmaceira internacional, deu-se esta revolução com uns militares a deitarem abaixo um Governo. Normalmente, os militares apoiavam ditaduras. Isso causou um certo frisson a nível internacional e toda a comunicação social veio cá. Foi uma época muito interessante”, recorda o jornalista.
José Carlos Vasconcelos, atual diretor do Jornal de Letras, confraternizou com muitos dos intelectuais que estiveram em Portugal nessa altura. No fundo, o que mais os impressionou “foi ter sido uma revolução pacífica”, diz. “O slogan que pegou em toda a parte era a Revolução dos Cravos – a espingarda com o cravo e as criancinhas”.
O brasileiro Jorge Amado, um dos seus grandes amigos, passou a vir frequentemente a Portugal depois da revolução. Ironicamente, ele, que viu os seus livros proibidos pela censura, tornou-se uma estrela no país com o estrondoso sucesso da telenovela “Gabriela Cravo e Canela”, que passou na RTP em 1977 e fez parar o país.
Outro dos grandes nomes da literatura com que José Carlos Vasconcelos privou foi o colombiano Gabriel García Márquez, que conheceu num jantar, em julho de 1975, através do escritor José Cardoso Pires. Poucos meses antes, a 1 de maio, foi um dos fundadores e assumiu a direção do semanário O Jornal, que publicava em Portugal as crónicas de García Márquez no El País.
Normalmente, “as pessoas pensam que quando os escritores se juntam em tertúlias falam de literatura. Mas eles falam de outras coisas. Nessa altura, falava-se de política e da revolução”, diz. O escritor e jornalista colombiano, que foi prémio Nobel da Literatura em 1982, veio como repórter para a revista colombiana Alternativa, que fundou com um grupo de intelectuais de esquerda, em Bogotá.
Nessa viagem a Portugal, em junho de 1975, “Gabo” falou com políticos, militares, jornalistas e escritores. Depois, publicou três reportagens onde referiu que os portugueses andavam tão contentes com a liberdade que “deixaram de respeitar os semáforos”. Reparou ainda que desde a Revolução dos Cravos houve uma explosão de erotismo nos cinemas e nos quiosques.
Mas também apontou as fragilidades do país. Numa das reportagens, escreveu: “sem educação, sem serviços de saúde, sem nenhum tipo de proteção do Estado, o português era um dos homens mais baratos do mundo.” E alertou que “Portugal está condenado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos do mundo”.
Estava, contudo, otimista sobre o futuro do país. Na última reportagem, escreveu que os militares do Movimento das Forças Armadas conseguirão “inventar esse socialismo à portuguesa”. E, concluía, “o desafio é enorme, mas estou convencido, modestamente, que vão consegui-lo”.
O que mais impressionou os intelectuais “foi ter sido uma revolução pacífica”, diz José Carlos Vasconcelos. “O slogan que pegou em toda a parte foi a Revolução dos Cravos – a espingarda com o cravo e as criancinhas”.