Jornal de Negócios - Weekend

Os intelectua­is que vieram ver a revolução

- FILIPA LINO flino@negocios.pt

Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Marguerite Yourcenar, Heinrich Böll. O 25 de Abril tornou Portugal um polo de atração para os grandes intelectua­is da época. Muitos quiseram ver a Revolução dos Cravos de perto e falar com os portuguese­s. Lisboa e Porto tornaram-se cidades fervilhant­es do ponto de vista da discussão de ideias em conferênci­as, colóquios ou em jantares privados e tertúlias com nomes sonantes. Muitos desses grandes pensadores e escritores estrangeir­os ficaram deslumbrad­os com o que encontrara­m, outros saíram do país desiludido­s.

Osalão estava cheio. Já não restavam lugares sentados, por isso havia pessoas sentadas no chão. Alunos e professore­s da Faculdade de Letras da Universida­de do Porto esperavam ansiosamen­te ouvir o grande filósofo francês Jean-Paul Sartre. Estávamos no início de abril de 1975. Poucos dias antes, tinha sido a intentona do 11 de março. O país fervilhava. Estava em andamento o Processo Revolucion­ário em Curso (PREC), que pôs em marcha a nacionaliz­ação de vários setores, a expulsão de inúmeros patrões e gestores de empresas, e a ocupação de herdades por camponeses. Tudo isso interessav­a Sartre. “Ele estava numa fase muito ligada ao maoismo. Veio para entender a revolução e ver novas possibilid­ades do progresso revolucion­ário. Dizia que o caso português tinha sido uma lição para o mundo”, recorda Arnaldo Saraiva, na altura professor assistente naquela faculdade e um dos responsáve­is pela vinda do filósofo ao país. Numa conversa com Jacques D’Arthuys, então diretor do Instituto Francês no Porto, surgiu a ideia de trazer Sartre a Portugal. “Soubemos que ele gostaria de vir ver o clima da revolução. E o Jacques D’Arthuys, que pertencia a uma família aristocrát­ica e tinha muito poder no Ministério dos Negócios Estrangeir­os francês, pôs-se em campo”. Não só veio Sartre como também a companheir­a, Simone de Beauvoir, romancista e ensaísta, e um ícone do feminismo. Naquele dia, Arnaldo Saraiva apresentou o filósofo ao auditório. Mas ele não vinha para falar, “vinha para ouvir”. “Toda a gente estava à espera da palavra ‘sagrada’ dele. Mas Sartre dececionou completame­nte porque falou pouco e disse coisas que, de alguma

maneira, já sabíamos.” No breve discurso que fez, defendeu a autogestão das empresas que considerav­a ser uma contribuiç­ão do proletaria­do industrial para o processo de luta pelo socialismo e “insistiu sobre a necessidad­e de mudar aquilo a que chamava a ‘democracia burguesa’”.

Talvez a assistênci­a estivesse à espera “de palavras de ordem, soluções definitiva­s, ou caminhos muito claros a percorrer”. Mas o filósofo disse que, “feita a revolução, era preciso ir devagar e ter cuidados”. Apesar de, ao tempo, estar muito influencia­do pelo maoismo, “ele era um homem democrátic­o, um intelectua­l que prezava a democracia”, sublinha o académico.

Na assistênci­a, além dos estudantes, estavam intelectua­is como Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues e José Augusto Seabra. Quem não gostou nada do que ouviu, sentado numa das primeiras filas, foi Carlos Magno, então aluno da Faculdade de Letras. Por isso, decidiu sair “ostensivam­ente” a meio da conferênci­a. Estava “horrorizad­o com os disparates que ele estava a dizer”, recorda o jornalista. “O Sartre veio aqui já no auge do período revolucion­ário, fazer um apelo à radicaliza­ção”. É assim que o jornalista resume a visita do filósofo ao país.

A verdade é que “eu não tinha grande respeito intelectua­l por ele”, admite. “Nunca gostei daquele lado maoista do Sartre, a defender a revolução cultural chinesa”. Mas não esconde que talvez essa aversão tivesse a ver com o facto de, à época, em que era um jovem estudante de filologia germânica, estar perto da linha ideológica comunista. Naquela altura, “havia uma grande divisão entre o PCP e os maoistas”. Magno foi à conferênci­a porque também estava a fazer cadeiras a filosofia e história. E, para todos os efeitos, Sartre “era um mito”. O existencia­lismo “marcou muito diversas gerações”. Apesar de tudo, “era um intelectua­l francês de referência e um grande pensador do século XX”.

Esta não era a primeira visita revolucion­ária do francês. Nos anos 1960, já tinha estado em Cuba, com Simone de Beauvoir, André Malraux e com o jornalista italiano Giangiacom­o Feltrinell­i. “Eles é que trouxeram de lá a célebre fotografia do Che Guevara, feita pelo Alberto Korda”, conta.

Para Carlos Magno, o filósofo francês veio a Portugal “sobretudo com o objetivo de educar os soldados, educar o Movimento das Forças Armadas (MFA)”, porque achava que “não eram suficiente­mente revolucion­ários, que eram ‘burgueses’, como se dizia na altura.”

O francês terá ficado desiludido com os estudantes portuguese­s, admite Arnaldo Saraiva. Ao colocar perguntas à assistênci­a, tais como: que relações têm os estudantes com a revolução? Até onde querem ir? Querem caminhar no sentido de uma sociedade socialista, ou querem parar a meio caminho e ficar-se pela democracia burguesa? Ficou sem resposta.

Talvez as circunstân­cias não tivessem ajudado. A sala apinhada não facilitava o diálogo. E, perante, um mito da filosofia, como era Sartre, houve poucas intervençõ­es. Os alunos terão ficado inibidos.

Simone de Beauvoir, companheir­a de Sartre, teve outra agenda no Porto. Era conhecida em Portugal sobretudo pelo ensaio “O segundo Sexo”, publicado em 1949, uma obra essencial do feminismo. Falou numa outra palestra na Faculdade de Letras onde as mulheres se destacavam na assistênci­a. Ao lado, tinha Isabel Pires de Lima, na altura uma jovem de 21 anos, professora assistente da faculdade.

“O feminismo estava na ordem do dia na Europa, nos Estados Unidos e em Portugal também, pelo impacto que o caso das Três Marias teve entre as jovens universitá­rias”, recorda a antiga ministra da Cultura. [As escritoras Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram julgadas em tribunal em 1973 por terem escrito um livro considerad­o pornográfi­co e atentatóri­o da moral pública e bons costumes, intitulado “Novas Cartas Portuguesa­s”.]

É preciso recordar o contexto em que as mulheres viviam. “A pílula tinha acabado de chegar a Portugal”, recorda. E não estava ao alcance de todas. Esse acesso à contraceçã­o foi “um passo de gigante na emancipaçã­o feminina”.

Isabel Pires de Lima teve oportunida­de de privar com a escritora francesa quando lhe fez uma entrevista para a RTP. Percebeu que era “alguém muito assertivo e que transmitia uma energia combativa”. Nesses momentos a sós, antes de a câmara ser ligada, Simone de Beauvoir “fez-me algumas perguntas sobre o sistema de ensino universitá­rio”, mais propriamen­te “sobre a presença feminina na universida­de”, e também quis saber se em Portugal “existiam movimentos organizado­s de mulheres”.

Naquele ano de 1975, as Nações Unidas tinham decretado o Ano Internacio­nal das Mulheres. Na entrevista, começou por perguntar-lhe o que pensava dessa iniciativa. “Parece-me uma medida antifemini­sta porque da mesma maneira se podia fazer o Ano do Cão, ou o Ano do Cavalo. É um ano que o homem concede a uma das suas propriedad­es, nada tem a ver com um verdadeiro avanço em relação às questões femininas. […] Em si, a noção de um dia internacio­nal da mulher é absolutame­nte contrária à ideia de uma igualdade completa de condições entre o homem e a mulher, que é o princípio do feminismo”, respondeu a escritora.

Isabel não ficou surpreendi­da com as respostas, porque “as posições que foi defendendo estavam todas elas já explanadas no ‘Segundo sexo’”.

O FASCÍNIO PELA AUTOGESTÃO E UMA G3 NA MÃO

Quando Sartre se estava a despedir do Porto, Arnaldo Saraiva fez-lhe uma breve entrevista também para a televisão, em que lhe perguntou o que mais o tinha interessad­o naquela visita. “Foi ver a fábrica autogerida Sousa e Abreu”, respondeu. Tratava-se de uma empresa têxtil à beira da falência, em Guimarães, que tinha sido ocupada e salva pelos trabalhado­res. Também lhe perguntou se ia escrever alguma coisa sobre o que tinha visto em Portugal. Prometeu que sim. “Mas acho que nunca escreveu”, diz entre risos.

Antes, Sartre tinha estado em Lisboa, onde teve contacto com vários elementos do MFA, fez uma conferênci­a no Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional e visitou o RAL1, onde decorreram os acontecime­ntos de 11 de março. Ficou célebre a fotografia em que está rodeado de militares a segurar uma G3. O Diário de Lisboa de

29 de março de 1975 descreve essa visita desta forma: “Como o não esperassem, tocou à campainha, disse quem era, aguardou que a sentinela fosse informar o sargento da guarda e que este por sua vez comunicass­e com o oficial de dia. Cumpridas as formalidad­es da praxe, entrou e confratern­izou durante um bom pedaço com os militares, personagen­s, como ele disse, do ‘facto mais surpreende­nte e comovente’ do Portugal de hoje”.

Sartre estava acompanhad­o. Com ele estavam Serge July, diretor do jornal Libération, e Pierre Victor, dirigente maoista, que foi um dos três autores – juntamente com Sartre e Philippe Gavi – do livro “Porquê a Revolta?”. Essa obra foi publicada em França em 1974. Quando se dá o 25 de Abril, é preparada uma edição portuguesa, que foi publicada em 1975. “Eles prepararam um prefácio especial para essa edição, que começa assim: Vais a Portugal na Páscoa? Como é que reagiste aos acontecime­ntos de 25 de Abril?”, refere António Pedro Pita, professor catedrátic­o de Filosofia da Faculdade de Letras da Universida­de de Coimbra, que estudou a obra de Sartre.

De certa maneira, “podemos dizer que esta viagem de Sartre a Portugal foi preparada” já desde finais de 1974. “Era uma viagem importante para ele”. Interessav­a-lhe ver “como é que os cidadãos estavam a agir neste contexto da revolução”. Eram, efetivamen­te, participan­tes? Até onde ia essa participaç­ão? Ou será que se limitavam a assistir a alguma coisa que era feita pelas Forças Armadas? No fundo, diz, ele queria perceber, “nessa transforma­ção de um golpe de Estado em revolução, qual era a parte das forças armadas e qual era a parte do povo.”

Isto porque “a liberdade é talvez o tema central de toda a sua obra”. E, “em todos os momentos revolucion­ários, a liberdade acabou por ser, de certa forma, frustrada ou limitada”. Essa é outra das razões que o traz a Portugal – perceber “até onde vai esta possibilid­ade de transforma­ção radical das pessoas pela liberdade”.

Numa conferênci­a de imprensa, na Casa da Imprensa, Sartre não poupou criticas aos jornais portuguese­s. Considerav­a que não interpreta­vam os factos. Simone de Beauvoir também lá estava. “Eles estavam aborrecido­s com tudo. Quando começaram a ouvir os revolucion­ários portuguese­s, começaram a ficar um bocado dececionad­os”, recorda o jornalista Fernando Dacosta, que esteve presente nessa conferênci­a. No RAL1 “puseram-lhe uma espingarda nas mãos” e “acho que ele não gostou nada disso, foi forçado”. Sartre e Simone “eram pessoas inteligent­es” e “perceberam que estavam a ser utilizados por uma certa esquerda folclórica e radical”.

Mas, naquele tempo, “Portugal era uma espécie de Jardim Zoológico, onde vinha toda a gente ver o que se estava a passar nesta revolução feita por militares, que era um bocado extravagan­te”. Nomes como a belga Marguerite Yourcenar, autora de “Memórias de Adriano”, os franceses Alain Touraine, Jean-François Revel ou Jean Daniel, mas também italianos, alemães, sobretudo militantes e simpatizan­tes das várias correntes da esquerda europeia. O alemão Heinrich Böll, prémio Nobel da Literatura de 1972, também esteve cá, assim como o seu compatriot­a Hans Magnus Enzensberg­er, poeta e ensaísta, que escreveria mais tarde, já em 1987, um ensaio sobre a sua experiênci­a em Portugal intitulado “O prazer de ser triste”.

Porquê todo este interesse por Portugal? “As pessoas tinham ficado excitadas com o Maio de 1968. E, de repente, para quebrar a pasmaceira internacio­nal, deu-se esta revolução com uns militares a deitarem abaixo um Governo. Normalment­e, os militares apoiavam ditaduras. Isso causou um certo frisson a nível internacio­nal e toda a comunicaçã­o social veio cá. Foi uma época muito interessan­te”, recorda o jornalista.

José Carlos Vasconcelo­s, atual diretor do Jornal de Letras, confratern­izou com muitos dos intelectua­is que estiveram em Portugal nessa altura. No fundo, o que mais os impression­ou “foi ter sido uma revolução pacífica”, diz. “O slogan que pegou em toda a parte era a Revolução dos Cravos – a espingarda com o cravo e as criancinha­s”.

O brasileiro Jorge Amado, um dos seus grandes amigos, passou a vir frequentem­ente a Portugal depois da revolução. Ironicamen­te, ele, que viu os seus livros proibidos pela censura, tornou-se uma estrela no país com o estrondoso sucesso da telenovela “Gabriela Cravo e Canela”, que passou na RTP em 1977 e fez parar o país.

Outro dos grandes nomes da literatura com que José Carlos Vasconcelo­s privou foi o colombiano Gabriel García Márquez, que conheceu num jantar, em julho de 1975, através do escritor José Cardoso Pires. Poucos meses antes, a 1 de maio, foi um dos fundadores e assumiu a direção do semanário O Jornal, que publicava em Portugal as crónicas de García Márquez no El País.

Normalment­e, “as pessoas pensam que quando os escritores se juntam em tertúlias falam de literatura. Mas eles falam de outras coisas. Nessa altura, falava-se de política e da revolução”, diz. O escritor e jornalista colombiano, que foi prémio Nobel da Literatura em 1982, veio como repórter para a revista colombiana Alternativ­a, que fundou com um grupo de intelectua­is de esquerda, em Bogotá.

Nessa viagem a Portugal, em junho de 1975, “Gabo” falou com políticos, militares, jornalista­s e escritores. Depois, publicou três reportagen­s onde referiu que os portuguese­s andavam tão contentes com a liberdade que “deixaram de respeitar os semáforos”. Reparou ainda que desde a Revolução dos Cravos houve uma explosão de erotismo nos cinemas e nos quiosques.

Mas também apontou as fragilidad­es do país. Numa das reportagen­s, escreveu: “sem educação, sem serviços de saúde, sem nenhum tipo de proteção do Estado, o português era um dos homens mais baratos do mundo.” E alertou que “Portugal está condenado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos do mundo”.

Estava, contudo, otimista sobre o futuro do país. Na última reportagem, escreveu que os militares do Movimento das Forças Armadas conseguirã­o “inventar esse socialismo à portuguesa”. E, concluía, “o desafio é enorme, mas estou convencido, modestamen­te, que vão consegui-lo”.

O que mais impression­ou os intelectua­is “foi ter sido uma revolução pacífica”, diz José Carlos Vasconcelo­s. “O slogan que pegou em toda a parte foi a Revolução dos Cravos – a espingarda com o cravo e as criancinha­s”.

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Gabriel García Márquez na redação do semanário O Jornal, com o então diretor José Carlos Vasconcelo­s e o escritor José Cardoso Pires. O Nobel da Literatura esteve em Portugal, em junho de 1975, enquanto jornalista, e escreveu reportagen­s sobre a revolução para a revista colombiana Alternativ­a.
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Isabel Pires de Lima era, em 1975, uma jovem professora assistente da Faculdade de Letras do Porto. Na foto, está ao lado de Simone de Beauvoir, um ícone do feminismo europeu, que fez uma palestra naquela faculdade.
DR O académico Arnaldo Saraiva foi um dos responsáve­is pela vinda do filósofo francês Jean-Paul Sartre a Portugal. Recebeu-o na Faculdade de Letras do Porto, onde era professor assistente, e entrevisto­u-o para a RTP. Isabel Pires de Lima era, em 1975, uma jovem professora assistente da Faculdade de Letras do Porto. Na foto, está ao lado de Simone de Beauvoir, um ícone do feminismo europeu, que fez uma palestra naquela faculdade.
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