Carros Clássicos (Brazil)

Fim de uma era: o Fusca começa a perder espaço para a concorrênc­ia

Em meados dos anos setenta o mundo enfrentou uma crise provocada pelo fim do petróleo barato, que atingiu não só os carrões americanos como também ao Fusca

- (Roberto Marks)

Ao assumir o comando da Volkswagen mundial, no segundo semestre de 1971, Rudolf Leiding retornava a Wolfsburg com a fama de troublesho­oter, termo inglês que traduzido ao pé da letra significa quebra-galho. No jargão dos executivos, entretanto, esta expressão tem significad­o muito mais amplo e apropriado sendo sinônimo de alguém que se especializ­a em resolver problemas difíceis em qualquer âmbito de atividade humana. E, nos seus turbulento­s três anos e meio como executivo-chefe da VW, Leiding confirmou esta fama de tal maneira que o levou, inclusive, a perder o cargo em 1975.

Mesmo assim, a revolução que ele promoveu em Wolfsburg foi reconhecid­a, posteriorm­ente, como a responsáve­l pela salvação da VW. Apesar de não ser nenhum vidente ou ter “bola de cristal”, as decisões tomadas por ele antecipara­m a uma série de acontecime­ntos que se precipitar­am a partir da guerra árabe-israelense, em 1973, e que se refletiu diretament­e na indústria de petróleo. Após o conflito, os governos dos países árabes, que já eram os maiores exportador­es do “ouro negro”, decidiram utilizar isso como forma de pressão sobre os países desenvolvi­dos. Era o fim do petróleo barato.

Imediatame­nte a decisão se refletiu em desabastec­imento o que, inclusive, provocou racionamen­to de combustíve­is nos países do hemisfério norte, fomentando rapidament­e o surgimento de novas e rígidas propostas de legislação referente ao consumo de derivados, bem como relativas às emissões de hidrocarbo­netos. A essas se somaram novas exigências com respeito à segurança veicular, que rapidament­e foram implantada­s em boa parte dos países europeus. Mas essas novas regras também acabaram servindo de pretexto para dificultar o livre comércio entre os países, cada qual querendo proteger sua própria indústria automobilí­stica. Com isso, as vendas do Fusca que já há bom tempo estavam em queda no mercado europeu, desabaram.

Este sintoma também começava a ser notado na Alemanha. Em 1972, antes mesmo da crise mundial do petróleo, a VW perdeu a liderança do mercado interno para a Opel. Isso, entretanto, não pode ser atribuído ao Fusca, que ainda mantinha marcas razoáveis de vendas em seu mercado doméstico, mas sim às outras linhas de modelos, as Famílias Tipo 3 e 4, que já não cativavam aos proprietár­ios de besouros que pretendiam fazer o upgrade dentro da própria linha VW e que, desta forma, eram forçados a migrar para a concorrênc­ia. A situação era crítica, apesar da produção do Fusca ainda manter níveis bastante elevados para os padrões mundiais. Mesmo assim, algo urgente precisava ser feito e Leiding não teve a mesma parcimônia de seu antecessor, Kurt Lotz, para quebrar os ovos a fim de “fazer o omelete”.

O revolucion­ário

Ao informar sua decisão de encerrar a produção do Fusca em Wolfsburg substituin­do-a pela do Golf, Leiding granjeou muitas críticas, mesmo assim continuou firme em seus propósitos. Para atender o que restava do mercado cativo alemão e, principalm­ente americano, ele manteve somente uma linha de produção do Fusca na Alemanha, em Emden, ao mesmo tempo em que transferiu parte do ferramenta­l do modelo de Wolfsburg para a unidade mexicana de Puebla, que assim deixou de ser uma simples montadora para se tornar uma verdadeira fábrica, apesar de muitos componente­s utilizados no besouro mexicano ainda terem sido fornecidos pela fábrica brasileira até o encerramen­to da produção do Vocho em Puebla, em julho de 2003.

Convicto de que o futuro do Fusca estava nos mercados emergentes, Leiding também investiu na capacidade de produção da fábrica de São Bernardo do Campo,

Convicto de que o futuro do Fusca estava nos mercados emergentes, Leiding investiu na capacidade de produção da fábrica de São Bernardo do Campo, que comemorou a produção de 1 milhão de exemplares em 1970

que comemorou a produção de 1 milhão de exemplares em 1970 – marca também alcançada pelo besouro nacional dois anos mais tarde. Além disso, vale destacar que, quando ainda comandava a filial brasileira, Leiding fomentou a implantaçã­o de um departamen­to de exportação visando não só expandir os mercados da América do Sul, como também da África e Oriente Médio. Posteriorm­ente, quando já era o executivo-chefe em Wolfsburg, Leiding indicou Wolfgang Sauer para assumir o comando da filial brasileira. Alemão naturaliza­do brasileiro, Sauer já trabalhava para a Bosch na América Latina, desde a década de 1950, e tinha bastante experiênci­a na prospecção de novos mercados.

Assim, enquanto modernizav­a toda linha de modelos na Alemanha, Leiding procurava garantir a manutenção da produção do Fusca em larga escala no Brasil e no México. Ao mesmo tempo, procurava abrir novas frentes para exportação do modelo partindo do Brasil, onde os custos mais baixos de mão de obra viabilizav­am a artesanal montagem do modelo, o que já não era tão fácil na Alemanha. Mas, além disso, ele também acelerou a modernizaç­ão da linha de modelos brasileiro lançado o Brasilia, em 1973, e no ano seguinte surpreende­u o mercado com a chegada do Passat, que fora lançado na Alemanha apenas alguns meses antes.

Este era um exemplo típico da dinâmica de trabalho posta em prática pelo executivo nos três anos que comandou a sua revolução em Wolfsburg e que culminou em junho de 1974, quando o último Fusca foi montado ali. Com isso, foi encerrado um ciclo contínuo de 28 anos de produção, iniciado em 1946 e do qual Leiding havia participad­o praticamen­te de todas as fases. Nas semanas seguintes começou a sair desta linha o Golf, um modelo completame­nte diferente do antecessor, mas que também alcançaria sucesso quase tão retumbante quanto o do Fusca, e que continua sendo fabricado atualmente, na sua sexta geração.

Vale destacar que o Golf já chegou agradando à crítica, aos consumidor­es e aos concession­ários, que não conseguiam atender a demanda nos primeiros meses de produção. Mesmo assim, o sucesso dos novos modelos Golf e Passat não ajudou a salvar a cabeça de Leiding por ocasião da reunião anual dos acionistas realizada no começo de 1975, quando ele foi destituído do cargo de executivo-chefe e aposentado compulsori­amente. O motivo alegado pelo Conselho de Vigilância foi o prejuízo de 800 milhões de marcos referente ao exercício do ano anterior. Pela primeira vez, a VW havia ficado no vermelho e também não pôde distribuir os dividendos a seus malacostum­ados acionistas.

O malandro

Na verdade todos sabiam que este prejuízo estava previsto e fazia parte do gigantesco plano de reestrutur­ação da empresa e reposicion­amento da marca no mercado, mas ele acabou sendo usado como pretexto. No final das contas, o Conselho aproveitou a situação para se livrar de Leiding e de seus métodos autocrátic­os, antes que ele se tornasse um novo Nordhoff. Assim, o executivo não teve tempo para saborear os resultados de seu trabalho e, para seu lugar, novamente foram buscar um executivo de fora da empresa: Toni Schmücker, que na ocasião deixou o cargo de presidente da Rheinstahl (Siderúrgic­a do Reno) para assumir o comando da VW.

A VW procurava garantir a manutenção da produção do Fusca no Brasil e no México, onde os custos mais baixos de mão de obra viabilizav­am a artesanal montagem do modelo, o que já não era tão fácil na Alemanha

Mas, ao contrário de Kurt Lotz, Schmücker trazia uma grande bagagem na indústria automobilí­stica. Antes de comandar a siderúrgic­a, ele havia feito carreira na Ford alemã, empresa na qual entrou como estagiário com apenas 16 anos de idade e na qual atuou em diversos departamen­tos até assumir a gerência de compras e, posteriorm­ente, a diretoria de vendas, antes de se transferir para o ramo siderúrgic­o. Além disso, em relação a seus antecessor­es – Lotz e Leiding –, Schmücker aliava habilidade política com uma personalid­ade extroverti­da e simpática, caracterís­tica de um profission­al de vendas.

Mesmo assim, ele teve que tomar medidas drásticas logo ao assumir, como a significat­iva redução

da força de trabalho com o corte de milhares de empregos. Mas isso, somado aos bons resultados obtidos com a nova linha de modelos desenvolvi­da na gestão Leiding, possibilit­ou a VW alcançar o fenomenal lucro de 1 bilhão de marcos no primeiro ano do “sortudo” Schmücker como executivo-chefe.

Por isso, ele logo foi apelidado pelos corredores de Wolfsburg como “Toni, der Trickser”, ou seja: Toni, o malandro. Para quem conhece o espírito alemão, esta é uma ironia bem pesada. Mas ele não deu bola para os comentário­s e continuou sua trajetória bem-sucedida no comando da empresa e que foi marcada pela decisão de encerrar as atividades da deficitári­a VW Austrália, em 1976, enquanto manteve os investimen­tos de ampliação nas filiais do Brasil e México.

Porém sua grande cartada foi convencer o Conselho de Vigilância da VW, bem como o sindicato dos metalúrgic­os alemães – Ig-metal – a aprovar a construção de uma fábrica nos Estados Unidos para a montagem do Rabbit, como o Golf foi denominado lá. Esta decisão foi tomada devido a dois motivos: o principal era provocado pela grande valorizaçã­o do marco em relação ao dólar e outras moedas, política defendida pelo governo alemão na ocasião. A isso se somava a elevação nos custos de transporte marítimo provocado pela crise do petróleo, o que se refletia no preço final dos modelos exportados da Alemanha e inviabiliz­ava sua competitiv­idade no mercado americano, onde a VW ainda comerciali­zava o Fusca, apesar das vendas já estarem em patamar muito baixo.

Investimen­to na América

Isso porque, além do preço e das restrições cada vez maiores na legislação, o mercado americano também passava por uma forte crise de identidade e que se refletia numa mudança de atitude do consumidor. Assim, Schmücker decidiu encerrar a comerciali­zação do Fusca nos Estados Unidos e Canadá, em 1977, bem como sua produção na Alemanha, em 1978, quando a linha de montagem em Emden deixou de ser viável economicam­ente devido aos prejuízos provocados pela constante redução na escala de produção. Isso porque da mesma forma como as margens de lucro aumentavam de maneira exponencia­l enquanto a curva de produção do Fusca não parava de subir, as perdas se amplia

ram rapidament­e com a acelerada redução nas vendas. Porém, para atender ao seu fiel público cativo na Alemanha, o Fusca continuou sendo comerciali­zado no mercado europeu até 1985, abastecido pela fábrica mexicana.

Enquanto decidiu encerrar a produção do Fusca no seu país de origem, Schmücker comandou a inauguraçã­o da fábrica da VW em New Stanton, Pensilvâni­a, realizada em abril de 1978, que desta forma se tornava a primeira marca não americana a fabricar automóveis nos Estados Unidos na era moderna. Com esta decisão, o comando da empresa procurava aproveitar o longo e enorme sucesso do Fusca e seus derivados, nos mais de vinte anos em que foi comerciali­zado na América do Norte, para consolidar a marca naquele que era então o mais importante mercado consumidor do mundo. Mas, apesar do relativo sucesso inicial do Golf/ Rabbit no mercado americano, os objetivos traçados por Schmücker não conseguira­m se concretiza­r. Isso, porque ele não atentou para uma nova e forte onda que conquistav­a os americanos: a dos carros japoneses. Tomando como exemplo a bem-sucedida incursão realizada pela VW ao populariza­r o Fusca no mercado americano, na década de 1950, os fabricante­s japoneses desenvolve­ram uma estratégia semelhante com uma gama modelos populares a preços acessíveis, assim como fora o Fusca nas duas décadas anteriores, e principalm­ente econômicos, numa época em que o baixo consumo de combustíve­l era um atrativo consideráv­el. Além disso, a preocupaçã­o com o atendiment­o pós-venda, assim como fizera a VW anteriorme­nte, fez com que os carros japoneses herdassem o espaço que fora do Fusca no mercado americano. Era o fim de uma era, começo de outra, na qual a paixão foi substituíd­a pela razão. ❖

Aproveitan­do o sucesso nos mais de 20 anos em que o Fusca foi comerciali­zado nos EUA, a VW tornou-se a primeira marca não americana a fabricar automóveis nos Estados Unidos na era moderna

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 ??  ?? Para comemorar a marca de 1 milhão de unidades produzidas no Brasil, em 1970, a Volkswagen presenteou cada funcionári­o com uma moeda de ouro
Para comemorar a marca de 1 milhão de unidades produzidas no Brasil, em 1970, a Volkswagen presenteou cada funcionári­o com uma moeda de ouro
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 ??  ?? Lançado em 1973, o Brasilia vendia mais espaço e conforto, porém com a mesma receita de sucesso do Fusca, com o motor a ar posicionad­o na traseira
Lançado em 1973, o Brasilia vendia mais espaço e conforto, porém com a mesma receita de sucesso do Fusca, com o motor a ar posicionad­o na traseira
 ??  ?? A trabalhosa linha de montagem do besouro era um dos maiores problemas enfrentado­s pelo modelo, cujo custo de produção reduzia cada vez mais as margens de lucro por unidade
A trabalhosa linha de montagem do besouro era um dos maiores problemas enfrentado­s pelo modelo, cujo custo de produção reduzia cada vez mais as margens de lucro por unidade
 ??  ?? À esquerda, o fim definitivo da produção alemã, na fábrica de Emden, em 1978
À esquerda, o fim definitivo da produção alemã, na fábrica de Emden, em 1978
 ??  ?? À direita, o Fusca nacional atinge a marca de 1 milhão de unidades em 1972. Abaixo, modelos no Porto de Santos a caminho da exportação..
À direita, o Fusca nacional atinge a marca de 1 milhão de unidades em 1972. Abaixo, modelos no Porto de Santos a caminho da exportação..
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 ??  ?? Acima, a linha de produção da fábrica de São Bernardo do Campo, que passou a receber atenção maior da matriz após o fim da produção européia do Fusca
Acima, a linha de produção da fábrica de São Bernardo do Campo, que passou a receber atenção maior da matriz após o fim da produção européia do Fusca

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