Duas realidades: o “abismo” entre o Fusca e o Beetle...
Com o tempo, apesar do desenho semelhante, o Fusca fabricado na Alemanha passou a se diferenciar do brasileiro em conforto, na mecânica e segurança
No final de 1968, o ex-piloto de Fórmula 1 Stirling Moss foi convidado a visitar o Brasil para conhecer as novidades apresentadas no VI Salão do Automóvel de São Paulo. Na mesma ocasião, ele também aproveitou para testar algumas das opções então oferecidas pela nossa indústria automobilística, entre elas o popular Volkswagen Sedan 1300. Ao final dos testes, um duro veredicto: para o inglês, nosso besouro perdia em potência, visibilidade, conforto e dirigibilidade quando comparado ao similar vendido na Europa.
Mais do que uma constatação, a comparação revelava uma triste realidade. Por mais que a publicidade procurasse aproximar os modelos produzidos por aqui com os de lá, a distância entre nosso Fusca eo Käfer fabricado na Alemanha foi ficando cada vez maior, muito além dos limites geográficos impostos pelo Oceano Atlântico. Esta diferenciação começou a ser acelerada a partir de meados dos anos sessenta.
Do começo das importações até a metade da década de 1960, o Fusca vendido no Brasil acompanhou as evoluções surgidas na matriz alemã. No máximo demorava um curto período para que as novidades fossem incorporadas aqui. Inicialmente, quando o modelo ainda era fabricado somente na Europa, devido à logística, ele demorava alguns meses até chegar ao Brasil completamente desmontado (CKD), de navio, ser montado e, finalmente, comercializado na concessionária.
Depois, quando foi iniciada a fabricação no Brasil, no começo de 1959, o modelo já incorporava as modificações realizadas no Fusca alemão um ano antes. Assim, na primeira metade dos anos sessen
ta, o modelo brasileiro e era praticamente igual ao alemão, salvo alguns detalhes no acabamento. Esse quadro, porém, mudaria drasticamente a partir de meados daquela década.
O BRASIL ATRÁS...
A primeira “digressão” ocorreu em 1964, quando a matriz aumentou a área envidraçada e modificou o para-brisa, que passou a apresentar uma pequena curvatura. A novidade, quase imperceptível, mas importante para o escoamento da água da chuva, foi estendida alguns anos depois até mesmo para os modelos fabricados no México, mas jamais chegou ao besouro brasileiro – até mesmo a série conhecida como “Itamar” ainda trazia o arcaico para-brisa totalmente plano e a reduzida área para os vidros.
Mas as mudanças realmente significativas, aquelas que separariam para sempre os modelos europeus dos produzidos pela VW no Brasil, apareceram em agosto de 1967. Na ocasião, o besouro fabricado na Alemanha e exportado para os EUA passou a ser equipado com sistema de freio com duplo circuito, câmbio semiautomático opcional (veja box), além de ter um reposicionamento dos faróis, lanternas e pára-choques – todos elevados para aumentar a segurança em caso de batidas. Na sequência, também veio a opção de freio dianteiro a disco.
Em 1970, outro importante pacote de mudanças foi lançado, distanciando ainda mais o Fusca alemão do similar brasileiro. Batizada de 1302, a nova série trazia características bastante distintas. A começar pela suspensão dianteira, que teve o sistema de feixes de lâminas de torção substituído pelo moderno
Mcpherson com mola helicoidal. A novidade permitia ao besouro um diâmetro de curva de apenas 9,6 metros (no brasileiro permanecia a manobra feita em 11 metros, devido à limitação de esterço dos braços arrastados).
Também devido à nova suspensão dianteira o entre eixos aumentou ligeiramente, 2 cm a mais (2.420 mm contra 2.400 mm). Além de maior segurança, a nova suspensão ocupava menos espaço, tornando possível “deitar” o estepe e aumentar a capacidade do porta-malas de 140 para 260 litros. Por outro lado, o
O sistema Mcpherson ocupava mais espaço vertical e exigia a elevação de para-lamas e capôs, dando ao besouro aparência mais “estufada”, semelhante a um lutador de boxe. Daí o apelido de Super Beetle
sistema Mcpherson ocupava mais espaço vertical do que o convencional, exigindo a elevação dos para-lamas e do capô dianteiro. Com isso, a parte frontal do carro ficou “estufada, semelhante a um lutador de boxe”, como diziam na época. E este Fusca com aparência de halterofilista acabou apelidado de Super Beetle.
Outra novidade apresentada no 1302 era o motor de 1.600 cm³ (50 cv/potência líquida), com cabeçote de dupla entrada. Com motor mais potente, a versão “esportiva”, chamada 1302 S, atingia 130 km/h e acelerava de 0 a 100 km/h em 19,5 segundos. Além disso, a suspensão traseira passou a ser por braço semi-arrastado mantendo a barra de torção, com semi-árvores de acionamento das rodas equipadas com juntas homocinéticas (até então só disponível nos modelos com câmbio semiautomático), que tornava muito mais seguro contornar curvas em maior velocidade – pois desaparecia a grande e inconveniente variação de cambagem, própria do sistema anterior de semi-eixo oscilante.
MAIS SEGURANÇA... PARA OS AMERICANOS
Em 1971, a curva das vendas de Fuscas nos EUA ainda estava estável. Por isso mesmo, no ano seguinte, outro avanço inimaginável para nós brasileiros: a VW adicionou ao motor um sistema eletrônico de diagnóstico de falhas. O dispositivo podia ser conectado a um rústico computador da assistência técnica das concessionárias e realizava até 88 inspeções nas condições do motor.
Mas foi em agosto de 1972 que o Super Beetle experimentou as últimas mudanças importantes.
Batizado como série 1303, o Fusca em sua evolução máxima apareceu com a área envidraçada ampliada, sendo o pára-brisa 42% maior do que a versão anterior e ficou conhecido como panorâmico, devido à sua proeminente curvatura. Desenvolvido para atender às rígidas exigências das leis americanas de segurança, o Super Beetle 1303 exigiu um investimento de milhões da Volkswagen.
Por fora, a carroceria era cerca de 10 centímetros mais comprida se comparada ao Fusca brasileiro devido à exigência de fixação especial dos para-choques. Com isso, o capô do porta-malas foi reduzido e ganhou novo desenho também devido ao pára-brisa “panorâmico”. Já os piscas dianteiros e as lanternas traseiras ficaram generosamente maiores (no Brasil, essas lanternas foram lançadas apenas em 1979, sendo logo apelidadas de “Fafá”).
Desta vez, as alterações também se estenderam para o interior do veículo. Um painel completamente novo, moldado em plástico, garantiu mais segurança em caso de batidas, além de ser bem mais moderno do que o anterior de metal. O velocímetro foi instalado num nicho para reduzir os efeitos de reflexo e facilitar a leitura. À sua esquerda, um relógio e dois luminosos: um deles indicando a posição do freio de estacionamento, enquanto o outro trazia a mensagem “Fasten Belts” (“atar cintos”, em inglês). O porta-luvas acomodava a curiosa alavanca
para destravar o capô dianteiro.
Com o Super Beetle 1303, o modelo também ganhava pela primeira vez sistema de ventilação dinâmica, com saídas de ar nas extremidades e no centro do painel. Sem falar que a fábrica passou a também oferecer opcionais de luxo como ar condicionado (outro item disponibilizado no México e “ignorado” no Brasil), aquecimento para o assento do motorista e desembaçador no vidro traseiro.
Os bancos já vinham com encosto alto e suporte reforçado, além de permitir melhor ajuste de posição. Como segurança era a palavra de ordem, os cintos de segurança passaram a ser retráteis e as portas ganharam barras de proteção contra impactos laterais. Conforme a revista australiana Modern Motors publicou na época, o interior do Fusca havia passado de uma claustrofóbica mala para um pequeno e espaçoso sedã.
Em 1973, embora a produção anual ainda estivesse na casa de 1,2 milhão de unidades, a curva de vendas apontava que o fim estava próximo para o 1303 – o que se agravou com a posterior crise mundial do petróleo. A demanda continuaria por mais alguns anos, sobretudo porque o modelo mantinha fiéis e entusiasmados consumidores. Mas a VW tinha prioridades mais importantes do que continuar investindo na evolução do Fusca.
A partir de 1974, a versão do Fusca evoluído seguiu com pequenas alterações visuais – uma delas foi nos piscas dianteiros, que deixaram os para-lamas e passaram para as extremidades do para-choque. Em julho de 1975, a Volkswagen encerrou a produção do Sedan 1303 (mantendo apenas uma pequena produção com a antiga carroceria de suspensão dianteira com barra de torção, que se estendeu até
A produção européia, que também abastecia o mercado norte-americano, foi mantida apenas até 1978. Quem se beneficiou foi o México, que recebeu todo o maquinário, bem mais moderno que o então existente no Brasil
1978, na fábrica de Emden).
Mas o Beetle teria uma sobrevida por mais alguns anos, mas somente na versão Cabriolé. Isso porque houve uma inesperada volta de interesse dos americanos pelo Fusca conversível assim que a Volkswagen anunciou o fim da produção na Alemanha. Para se ter uma idéia, as vendas do conversível nos EUA em 1979 cresceram 60% em relação ao ano de 1970. Mas o entusiasmo dos consumidores americanos pelo Cabriolé não era o suficiente para manter o modelo em produção. Em janeiro de 1980, o último exemplar deixou a fábrica da Karmann, em Osnabrück. Esses modelos, a partir de metade de 1978, eram produzidos em cima de unidades fabricadas no México e enviadas para a Europa para serem convertidos em conversíveis e novamente atravessarem o Atlântico para atender o mercado americano. ❖