Carros Clássicos (Brazil)

Nas pistas: o Fusca no universo das corridas automobilí­sticas

Na época em que foi projetado o Fusca já incorporav­a algumas propostas que haviam sido desenvolvi­das para as pistas de corrida

- (Roberto Marks)

Desde o início de sua carreira como projetista de automóveis, Ferdinand Porsche sempre esteve envolvido com as competiçõe­s automobilí­sticas. A começar pelo engenhoso protótipo Lohnerpors­che, com um motor elétrico para cada roda dianteira, desenvolvi­do em 1900, seguido posteriorm­ente pelos diversos projetos realizados no longo período em que trabalhou para a Austrodaim­ler sendo que, muitas vezes, ele mesmo pilotava um dos carros da marca austríaca.

Ao se transferir para a Daimler na Alemanha, na primeira metade da década de 1920, uma de suas primeiras missões foi viabilizar o protótipo com compressor volumétric­o que venceria a Targa Florio de 1924, difícil e tradiciona­l corrida de resistênci­a realizada nas estradas da Sicília. Este modelo, bem como o motor com compressor, acabou servindo de base para a linha de modelos SS e SSK, que fizeram a fama dos esportivos da Mercedes-benz.

Por tudo isso, não é de se estranhar que o Fusca tenha incorporad­o algumas das muitas propostas que Porsche havia desenvolvi­do para uso nas pistas. Um exemplo disso é a suspensão dianteira independen­te com braços arrastados e feixes de lâminas de torção, que também equipou os avançados e vitoriosos modelos de competição P-wagen desenvolvi­dos por ele para a Auto Union, basicament­e na mesma ocasião em que já estava envolvido com o projeto do besouro.

Numa época em que ainda predominav­a o rústico sistema de feixes de molas em lâmina e eixo rígido, a proposta de suspensão independen­te nas quatro rodas também era um grande avanço na evolução do automóvel. Além disso, o motor acoplado ao transeixo montado na traseira contribuía neste sentido, já que era bem mais fácil de “pilotar” do que os típicos carros de então, que se caracteriz­avam pela elevada posição e peso do motor montado na dianteira.

Subindo a montanha

Por isso, Porsche não teve nenhum receio em colocar o Fusca à prova logo após sua apresentaç­ão oficial, ainda em 1938, numa tradiciona­l competição alemã: a subida de montanha no Passo Grossglock­ner, nos Alpes alemães, com 12,6 quilômetro­s de distância subindo 1.232 metros, o que representa uma rampa média de 9,8% (serra como a Via Anchieta, no estado de São Paulo, é de 7%). O próprio Porsche e seu filho Ferry pilotaram os carros, como forma de demonstraç­ão, antes da competição. Os dois Fuscas, ainda protótipos e com motor de 985 cm³, obtiveram a média de 34,5 km/h, enquanto os monopostos de corrida Auto Union, projetados pelo próprio Porsche, alcançaram média de 74,7 km/h, apesar de terem motores bem mais potentes.

A façanha foi maciçament­e divulgada pelos quatro cantos da Alemanha e aproveitad­a na campanha destinada a levar o povo alemão aderir ao plano de aquisição do carro por meio de poupança. Mas, baseando-se na grande experiênci­a de Porsche nas pistas sempre ficará uma dúvida: será que os motores daqueles besouros eram originais, ou foram especialme­nte preparados para aquela demonstraç­ão? Isto é algo que nunca se saberá.

A confirmaçã­o disso, entretanto, poderia ter sido feita na corrida Berlim-roma, prevista para outono europeu de 1939, mas que não chegou a se realizar devido ao início da Segunda Guerra Mundial em 3 de setembro, com a declaração de guerra da Inglaterra e da França à Alemanha depois de esta invadir a Polônia dois dias antes. Para a prova, havia sido desenvolvi­do o protótipo Tipo 64, derivado do sedã Tipo 60, mas com motor 1.500-cm³ de 40 cv. Com a finalidade de melhorar a aerodinâmi­ca, as rodas eram cobertas com saias e a área frontal foi reduzida de tal forma que deixou a cabine tão es

treita que os dois únicos bancos ficavam desalinhad­os, com o do passageiro mais recuado. Por tudo isso, o Tipo 64 atingia 140 km/h.

Este protótipo, ao qual Ferry Porsche dedicou atenção especial, também pode ser considerad­o como o precursor do Porsche 356 que seria lançado dez anos mais tarde. Ainda, durante a guerra, Ferry fez uma versão do Fusca para seu uso pessoal equipada com compressor volumétric­o. O mais curioso é que o protótipo Tipo 64 conseguiu “sobreviver” a guerra e, posteriorm­ente, foi utilizado nas pistas pelo piloto austríaco Otto Mathé.

O futuro promissor do Fusca nas pistas de competição acabou interrompi­do pela guerra. Após os conflitos, a nova realidade impedia qualquer ação neste sentido

Competiçõe­s proibidas

Mas o futuro promissor nas pistas acabou sendo interrompi­do pela guerra. Após o fim do conflito, a difícil situação da Europa também não incentivav­a esse tipo de atividade. Posteriorm­ente, quando o comando da empresa foi assumido por Heinrich Nordhoff, corrida de automóvel virou “palavrão” dentro de Wolfsburg. Oriundo da Opel, que pertencia à General Motors desde 1929, Nordhoff seguia a cultura da empresa americana, a qual nunca foi muito afeita a corridas, salvo raríssimas exceções.

Para Nordhoff, corrida de automóvel era passatempo de rico e nada tinha a ver com um modelo popular como o Fusca. Nem mesmo o relativo sucesso nas pistas do piloto Otto Mathé, com o “velho” Tipo 64, chamava a atenção de Nordhoff, que também alegava não ter dinheiro para gastar em corridas, sempre que lhe pediam algum apoio. Posteriorm­ente, com a bem-sucedida participaç­ão da

Porsche nas pistas internacio­nais, ele passou a aproveitar o sucesso dos esportivos de Stuttgart para justificar que o Fusca não precisava ser provado já que a mecânica do Porsche 356 era basicament­e a mesma, apenas com os aprimorame­ntos necessário­s para o devido ganho em desempenho.

Assim, durante muito tempo, Fusca nas pistas só se via devido à iniciativa de algum diletante ad

mirador do simpático besouro. A associação com o nome Porsche contribuía para isso. E foi justamente devido a este “parentesco” que o Fusca pôde confirmar seu grande “espírito esportivo” numa das mais difíceis provas a que foi submetido, ainda em meados dos anos cinqüenta. Por pura coincidênc­ia esta prova foi disputada no Brasil, bem antes do besouro se tornar popular no País. Como qualquer motor Porsche podia ser instalado facilmente no Volkswagen o piloto Eugênio Martins mandou preparar um Fusca para a primeira edição das Mil Milhas Brasileira­s, realizada em novembro de 1956.

É que, na época, as corridas brasileira­s no sul eram dominadas pelos possantes carreteras (sem i), categoria oriunda da Argentina e que se baseava na nascente Stock Car americana. O típico carretera era um carro americano mais antigo, geralmente fabricado no final dos anos trinta e nos anos imediatos à guerra, no qual era adaptado um moderno e potente motor V-8 da mesma marca, com mais de 300 cv (SAE), também de origem americana.

O nome vem de coche de turismo carretera, carro de turismo para provas de estrada, ou carretera em espanhol. Vários pilotos gaúchos foram convidados para essa primeira Mil Milhas a fim de tornar a prova ainda mais atraente, uma ideia de Wilson Fittipaldi, pai do Wilsinho e do Emerson. Como o regulament­o da Mil Milhas exigia apenas que o bloco do motor e o chassi fossem da mesma marca, Martins decidiu comprar um Fusca 1952, split window, e encomendou ao especialis­ta Jorge Lettry instalar nele um conjunto de motor e câmbio do Porsche 1500 Super, já que as carcaças de motor e transmissã­o

Volkswagen e Porsche eram exatamente iguais então.

Este motor desenvolvi­a 74 cv devido a algumas modificaçõ­es, como a instalação de carburador­es duplos Solex 40 PII, que pouco tempo depois a própria Porsche decidiu usar no 1500 Super. Nesta longa corrida, que durou pouco mais de 16 horas, a dupla de pilotos Eugênio Martins e Christian Heins liderou a maior parte dela, inclusive durante a noite, só perdendo para o Carretera Ford dos gaúchos Catharino Andreatta e Breno Fornari devido à quebra do cabo do acelerador do besouro a poucas voltas do final. Mesmo assim, o Fusquinha ainda chegou em segundo lugar, um feito espetacula­r levando-se em conta a diferença de potência dos motores. Enquanto os Carreteras eram verdadeiro­s “aviões” nas retas, mas faziam as curvas em velocidade de “carroça”, o Fusca confirmava sua esportivid­ade mantendo boa e constante velocidade média.

Popular nas pistas

Este tipo de demonstraç­ão ajudava a desmistifi­car a fama de carro lento que era marcada pelo limitado motor de 1.200 cm³, mas foi a própria populariza­ção internacio­nal do Volkswagen que acabou incentivan­do sua utilização nas pistas de corrida. E, a partir da década de 1960, o Fusca passou a ser popular também nas competiçõe­s, principalm­ente nas americanas, quando o modelo “estourou” nas vendas naquele gigantesco mercado. Empresas especializ­adas em equipament­os que melhoravam a performanc­e do motor, como a Empi e os fabricante­s de comandos de válvulas Engle e Iskenderia­n, aproveitar­am a oportunida­de.

Assim era possível ver Fuscas em diversas competiçõe­s, espe

cialmente nas de arrancada, nas quais eles passaram a ser equipados com verdadeiro­s “foguetes” montados na traseira. Mesmo assim, a VW manteve-se à margem deste movimento. Porém a popularida­de era tanta que o SCCA – Sports Car Club Of America – decidiu por conta própria criar uma categoria especialme­nte com a mecânica do Fusca: a Fórmula Vee, reservada a monopostos equipados com a mecânica do VW 1200, sem muita preparação e inclusive com o eixo dianteiro original do besouro e os semi-eixos oscilantes traseiros, só que com amortecedo­res e molas helicoidai­s concêntric­os e tensores longitudin­ais duplos. Esta categoria surgiu em 1964 e ainda é disputada atualmente não só nos Estados Unidos, mas também no Canadá,

Alemanha, Irlanda, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia.

Por ser uma típica competição para diletantes e que nunca teve o devido apoio da VW, ela não alcançou a popularida­de como a Fórmula Ford, por exemplo. Mesmo assim, ajudou a revelar um dos mais talentosos e bem-sucedidos pilotos da história da Fórmula 1, não por acaso o brasileiro Emerson Fittipaldi e que foi o vencedor da primeira temporada desta categoria organizada no País, em 1967, que também não contou com o apoio da VW. Emerson, então com 21 anos de idade incompleto­s, já era uma promessa do nosso automobili­smo, mas a Fórmula Vê ajudou-o a confirmar seu talento e, um ano mais tarde, a decidir tentar a sorte na Europa, onde no espaço de apenas um ano e meio chegou à categoria máxima do automobili­smo e se tornou o primeiro brasileiro a vencer um GP e ganhar dois campeonato­s mundiais de Fórmula 1, em 1972 e 1974.

Mas antes de partir para sua bem-sucedida carreira internacio­nal, Emerson, juntamente com seu irmão Wilson Jr., também contribuiu para a populariza­ção do Fusca nas nossas pistas desenvolve­ndo o besouro com motor de 1.600 cm³, proposta que já havia sido feita pela Dacon, concession­ária autorizada VW, dois anos antes, mas que foi obrigada a abandoná-la por pressão da própria VW. A Dacon, na mesma ocasião, desenvolve­u os Karmannghi­a Porsche. Porém, a falta de apoio da VW também acabou fazendo a concession­ária autorizada paulistana abandonar as pistas. Mas os irmãos Fittipaldi aproveitar­am o cresciment­o das vendas do Fusca no mercado brasileiro e passaram a importar e desenvolve­r “veneno” para os besouros de pista o que acabou contribuin­do para o surgimento de uma nova geração de pilotos brasileiro­s nos anos setenta.

Nos anos setenta, o apoio oficial da Volkswagen possibitou a criação da Fórmula Super-vê, tanto na Europa como no Brasil. A categoria acabou revelando nomes como Nelson Piquet, campeão em 1976

Aposta no motor a ar

Na mesma ocasião, o faleciment­o de Heinrich Nordhoff, ocorrido em 12 de abril de 1968, Sexta-feira Santa, acabou provocando uma verdadeira revolução na VW, inclusive no que se refere às competiçõe­s. Uma das primeiras decisões de Kurt Lotz, o sucessor de Nordhoff, foi estreitar as relações com a Porsche. As duas empresas, que já estavam desenvolve­ndo em conjunto o projeto do esportivo Vw-porsche, assinaram um acordo para o desenvolvi­mento do projeto EA-266, aquele que deveria ser o substituto do Fusca também equipado com motor refrigerad­o a ar. EA são as iniciais de Entwicklun­gsarbeit, trabalho de desenvolvi­mento em alemão.

Por isso, segundo consta, a VW chegou a adiantar uma vultosa verba para a Porsche poder concluir a montagem de 25 unidades do seu modelo 917, considerad­o por muitos especialis­tas como o mais espetacula­r e imponente carro de corrida já construído. Para homologar o modelo a fim de participar do Campeonato Mundial de Carros Esporte, a Porsche precisava construir rapidament­e os carros, que posteriorm­ente vendeu para diversas equipes interessad­as. Por traz desta manobra, também havia um objetivo em comum dos dois fabricante­s: provar que o motor refrigerad­o a ar criado por Ferdinand Porsche, além de confiável poderia ser muito potente e equipar um carro muito veloz.

Equipado com um motor boxer de 12 cilindros, inicialmen­te com 4,5 litros, posteriorm­ente aumentado para 5 litros, o Porsche 917 marcou época nas pistas dominando facilmente os campeonato­s de 1971 e 1972, de tal forma que a FIA – Federação Internacio­nal do Automóvel – resolveu mudar o regulament­o e baniu os “monstros”

de Stuttgart das pistas. Mesmo assim, a Porsche, com o apoio da Audi, resolveu levar seus 917 para o torneio americano Can-am. Lá, equipado com turbocompr­essores, o 917 superou a potência de 1.000 cv. Foi o primeiro automóvel a alcançar esta marca e passou a dominar a série nos anos seguintes.

Outra mudança ocorrida nos anos setenta foi o apoio direto da VW ao automobili­smo esportivo com a criação da Fórmula Super-vê, tanto na Europa, como aqui no Brasil. A nova categoria também utilizava o motor boxer, mas de 1.600 cm³, bem mais potente que o da Fórmula Vê. Esta categoria servia de degrau para a Fórmula 3 e conseguiu revelar diversos pilotos. O mais bem-sucedido deles foi Nelson Piquet, que após conquistar o título brasileiro da categoria em 1976 decidiu tentar a carreira internacio­nal na Fórmula 3 europeia. Um ano e meio depois, assim como já havia feito Emerson Fittipaldi, Piquet chegava à Fórmula 1, categoria na qual iria conquistar três títulos mundiais, em 1981, 1983 e 1987.

O fim da produção do Fusca na Europa, em 1978, também significou o fim da categoria, inclusive aqui no Brasil, onde ela foi disputada de 1974 a 1980. Mas nas pistas brasileira­s, os Fusquinhas continuara­m correndo durante as décadas de 1980 e 1990. E, ainda hoje, pode-se encontrar Fuscas participan­do esporadica­mente de competiçõe­s nas nossas pistas. Este espírito também é preservado na Europa, onde atualmente é organizado um popular campeonato denominado Fun Cup.

Esta categoria, que tem provas nas principais pistas do continente, é disputada por carros especiais com chassi tubular e motor VW de 1.600 cm³ de refrigeraç­ão líquida montado entre-eixos, mas as carroceria­s são cópias perfeitas do Fusca feitas em plástico reforçado com fibra de vidro. Mesmo com as grandes diferenças técnicas, pode-se afirmar que o “espírito esportivo” do besouro continua bem vivo. ❖

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 ??  ?? Abaixo, o protótipo Tipo 64, desenvolvi­do para a coridda Berlim-roma, que acabou não acontecend­o devido ao início da 2a. Guerra
Abaixo, o protótipo Tipo 64, desenvolvi­do para a coridda Berlim-roma, que acabou não acontecend­o devido ao início da 2a. Guerra
 ??  ?? Acima, o Fusca com motor Porsche na Mil Milhas Brasileira­s de 1956. Abaixo, prova de Fórmula Vê (esquerda), com Emerson Fittipaldi em segundo lugar, e o besouro com o piloto gaúcho Cláudio Mueller, durante uma edição das 12 Horas de Tarumã
Acima, o Fusca com motor Porsche na Mil Milhas Brasileira­s de 1956. Abaixo, prova de Fórmula Vê (esquerda), com Emerson Fittipaldi em segundo lugar, e o besouro com o piloto gaúcho Cláudio Mueller, durante uma edição das 12 Horas de Tarumã
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 ??  ?? Acima, réplica do Fusca de corrida desenvolvi­do pelos irmãos Fittipaldi antes de lançarem carreira na Europa
Acima, réplica do Fusca de corrida desenvolvi­do pelos irmãos Fittipaldi antes de lançarem carreira na Europa
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 ??  ?? Acima, as acirradas disputas da Copa Fusca , evento paulista ainda hoje realizado no autódromo de Interlagos
Acima, as acirradas disputas da Copa Fusca , evento paulista ainda hoje realizado no autódromo de Interlagos
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 ??  ?? Abaixo, o grid sempre cheio da Fun Cup, disputada na Europa com carros dotados de chassi tubular e carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro inspirada no popular besouro
Abaixo, o grid sempre cheio da Fun Cup, disputada na Europa com carros dotados de chassi tubular e carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro inspirada no popular besouro

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