Nas pistas: o Fusca no universo das corridas automobilísticas
Na época em que foi projetado o Fusca já incorporava algumas propostas que haviam sido desenvolvidas para as pistas de corrida
Desde o início de sua carreira como projetista de automóveis, Ferdinand Porsche sempre esteve envolvido com as competições automobilísticas. A começar pelo engenhoso protótipo Lohnerporsche, com um motor elétrico para cada roda dianteira, desenvolvido em 1900, seguido posteriormente pelos diversos projetos realizados no longo período em que trabalhou para a Austrodaimler sendo que, muitas vezes, ele mesmo pilotava um dos carros da marca austríaca.
Ao se transferir para a Daimler na Alemanha, na primeira metade da década de 1920, uma de suas primeiras missões foi viabilizar o protótipo com compressor volumétrico que venceria a Targa Florio de 1924, difícil e tradicional corrida de resistência realizada nas estradas da Sicília. Este modelo, bem como o motor com compressor, acabou servindo de base para a linha de modelos SS e SSK, que fizeram a fama dos esportivos da Mercedes-benz.
Por tudo isso, não é de se estranhar que o Fusca tenha incorporado algumas das muitas propostas que Porsche havia desenvolvido para uso nas pistas. Um exemplo disso é a suspensão dianteira independente com braços arrastados e feixes de lâminas de torção, que também equipou os avançados e vitoriosos modelos de competição P-wagen desenvolvidos por ele para a Auto Union, basicamente na mesma ocasião em que já estava envolvido com o projeto do besouro.
Numa época em que ainda predominava o rústico sistema de feixes de molas em lâmina e eixo rígido, a proposta de suspensão independente nas quatro rodas também era um grande avanço na evolução do automóvel. Além disso, o motor acoplado ao transeixo montado na traseira contribuía neste sentido, já que era bem mais fácil de “pilotar” do que os típicos carros de então, que se caracterizavam pela elevada posição e peso do motor montado na dianteira.
Subindo a montanha
Por isso, Porsche não teve nenhum receio em colocar o Fusca à prova logo após sua apresentação oficial, ainda em 1938, numa tradicional competição alemã: a subida de montanha no Passo Grossglockner, nos Alpes alemães, com 12,6 quilômetros de distância subindo 1.232 metros, o que representa uma rampa média de 9,8% (serra como a Via Anchieta, no estado de São Paulo, é de 7%). O próprio Porsche e seu filho Ferry pilotaram os carros, como forma de demonstração, antes da competição. Os dois Fuscas, ainda protótipos e com motor de 985 cm³, obtiveram a média de 34,5 km/h, enquanto os monopostos de corrida Auto Union, projetados pelo próprio Porsche, alcançaram média de 74,7 km/h, apesar de terem motores bem mais potentes.
A façanha foi maciçamente divulgada pelos quatro cantos da Alemanha e aproveitada na campanha destinada a levar o povo alemão aderir ao plano de aquisição do carro por meio de poupança. Mas, baseando-se na grande experiência de Porsche nas pistas sempre ficará uma dúvida: será que os motores daqueles besouros eram originais, ou foram especialmente preparados para aquela demonstração? Isto é algo que nunca se saberá.
A confirmação disso, entretanto, poderia ter sido feita na corrida Berlim-roma, prevista para outono europeu de 1939, mas que não chegou a se realizar devido ao início da Segunda Guerra Mundial em 3 de setembro, com a declaração de guerra da Inglaterra e da França à Alemanha depois de esta invadir a Polônia dois dias antes. Para a prova, havia sido desenvolvido o protótipo Tipo 64, derivado do sedã Tipo 60, mas com motor 1.500-cm³ de 40 cv. Com a finalidade de melhorar a aerodinâmica, as rodas eram cobertas com saias e a área frontal foi reduzida de tal forma que deixou a cabine tão es
treita que os dois únicos bancos ficavam desalinhados, com o do passageiro mais recuado. Por tudo isso, o Tipo 64 atingia 140 km/h.
Este protótipo, ao qual Ferry Porsche dedicou atenção especial, também pode ser considerado como o precursor do Porsche 356 que seria lançado dez anos mais tarde. Ainda, durante a guerra, Ferry fez uma versão do Fusca para seu uso pessoal equipada com compressor volumétrico. O mais curioso é que o protótipo Tipo 64 conseguiu “sobreviver” a guerra e, posteriormente, foi utilizado nas pistas pelo piloto austríaco Otto Mathé.
O futuro promissor do Fusca nas pistas de competição acabou interrompido pela guerra. Após os conflitos, a nova realidade impedia qualquer ação neste sentido
Competições proibidas
Mas o futuro promissor nas pistas acabou sendo interrompido pela guerra. Após o fim do conflito, a difícil situação da Europa também não incentivava esse tipo de atividade. Posteriormente, quando o comando da empresa foi assumido por Heinrich Nordhoff, corrida de automóvel virou “palavrão” dentro de Wolfsburg. Oriundo da Opel, que pertencia à General Motors desde 1929, Nordhoff seguia a cultura da empresa americana, a qual nunca foi muito afeita a corridas, salvo raríssimas exceções.
Para Nordhoff, corrida de automóvel era passatempo de rico e nada tinha a ver com um modelo popular como o Fusca. Nem mesmo o relativo sucesso nas pistas do piloto Otto Mathé, com o “velho” Tipo 64, chamava a atenção de Nordhoff, que também alegava não ter dinheiro para gastar em corridas, sempre que lhe pediam algum apoio. Posteriormente, com a bem-sucedida participação da
Porsche nas pistas internacionais, ele passou a aproveitar o sucesso dos esportivos de Stuttgart para justificar que o Fusca não precisava ser provado já que a mecânica do Porsche 356 era basicamente a mesma, apenas com os aprimoramentos necessários para o devido ganho em desempenho.
Assim, durante muito tempo, Fusca nas pistas só se via devido à iniciativa de algum diletante ad
mirador do simpático besouro. A associação com o nome Porsche contribuía para isso. E foi justamente devido a este “parentesco” que o Fusca pôde confirmar seu grande “espírito esportivo” numa das mais difíceis provas a que foi submetido, ainda em meados dos anos cinqüenta. Por pura coincidência esta prova foi disputada no Brasil, bem antes do besouro se tornar popular no País. Como qualquer motor Porsche podia ser instalado facilmente no Volkswagen o piloto Eugênio Martins mandou preparar um Fusca para a primeira edição das Mil Milhas Brasileiras, realizada em novembro de 1956.
É que, na época, as corridas brasileiras no sul eram dominadas pelos possantes carreteras (sem i), categoria oriunda da Argentina e que se baseava na nascente Stock Car americana. O típico carretera era um carro americano mais antigo, geralmente fabricado no final dos anos trinta e nos anos imediatos à guerra, no qual era adaptado um moderno e potente motor V-8 da mesma marca, com mais de 300 cv (SAE), também de origem americana.
O nome vem de coche de turismo carretera, carro de turismo para provas de estrada, ou carretera em espanhol. Vários pilotos gaúchos foram convidados para essa primeira Mil Milhas a fim de tornar a prova ainda mais atraente, uma ideia de Wilson Fittipaldi, pai do Wilsinho e do Emerson. Como o regulamento da Mil Milhas exigia apenas que o bloco do motor e o chassi fossem da mesma marca, Martins decidiu comprar um Fusca 1952, split window, e encomendou ao especialista Jorge Lettry instalar nele um conjunto de motor e câmbio do Porsche 1500 Super, já que as carcaças de motor e transmissão
Volkswagen e Porsche eram exatamente iguais então.
Este motor desenvolvia 74 cv devido a algumas modificações, como a instalação de carburadores duplos Solex 40 PII, que pouco tempo depois a própria Porsche decidiu usar no 1500 Super. Nesta longa corrida, que durou pouco mais de 16 horas, a dupla de pilotos Eugênio Martins e Christian Heins liderou a maior parte dela, inclusive durante a noite, só perdendo para o Carretera Ford dos gaúchos Catharino Andreatta e Breno Fornari devido à quebra do cabo do acelerador do besouro a poucas voltas do final. Mesmo assim, o Fusquinha ainda chegou em segundo lugar, um feito espetacular levando-se em conta a diferença de potência dos motores. Enquanto os Carreteras eram verdadeiros “aviões” nas retas, mas faziam as curvas em velocidade de “carroça”, o Fusca confirmava sua esportividade mantendo boa e constante velocidade média.
Popular nas pistas
Este tipo de demonstração ajudava a desmistificar a fama de carro lento que era marcada pelo limitado motor de 1.200 cm³, mas foi a própria popularização internacional do Volkswagen que acabou incentivando sua utilização nas pistas de corrida. E, a partir da década de 1960, o Fusca passou a ser popular também nas competições, principalmente nas americanas, quando o modelo “estourou” nas vendas naquele gigantesco mercado. Empresas especializadas em equipamentos que melhoravam a performance do motor, como a Empi e os fabricantes de comandos de válvulas Engle e Iskenderian, aproveitaram a oportunidade.
Assim era possível ver Fuscas em diversas competições, espe
cialmente nas de arrancada, nas quais eles passaram a ser equipados com verdadeiros “foguetes” montados na traseira. Mesmo assim, a VW manteve-se à margem deste movimento. Porém a popularidade era tanta que o SCCA – Sports Car Club Of America – decidiu por conta própria criar uma categoria especialmente com a mecânica do Fusca: a Fórmula Vee, reservada a monopostos equipados com a mecânica do VW 1200, sem muita preparação e inclusive com o eixo dianteiro original do besouro e os semi-eixos oscilantes traseiros, só que com amortecedores e molas helicoidais concêntricos e tensores longitudinais duplos. Esta categoria surgiu em 1964 e ainda é disputada atualmente não só nos Estados Unidos, mas também no Canadá,
Alemanha, Irlanda, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
Por ser uma típica competição para diletantes e que nunca teve o devido apoio da VW, ela não alcançou a popularidade como a Fórmula Ford, por exemplo. Mesmo assim, ajudou a revelar um dos mais talentosos e bem-sucedidos pilotos da história da Fórmula 1, não por acaso o brasileiro Emerson Fittipaldi e que foi o vencedor da primeira temporada desta categoria organizada no País, em 1967, que também não contou com o apoio da VW. Emerson, então com 21 anos de idade incompletos, já era uma promessa do nosso automobilismo, mas a Fórmula Vê ajudou-o a confirmar seu talento e, um ano mais tarde, a decidir tentar a sorte na Europa, onde no espaço de apenas um ano e meio chegou à categoria máxima do automobilismo e se tornou o primeiro brasileiro a vencer um GP e ganhar dois campeonatos mundiais de Fórmula 1, em 1972 e 1974.
Mas antes de partir para sua bem-sucedida carreira internacional, Emerson, juntamente com seu irmão Wilson Jr., também contribuiu para a popularização do Fusca nas nossas pistas desenvolvendo o besouro com motor de 1.600 cm³, proposta que já havia sido feita pela Dacon, concessionária autorizada VW, dois anos antes, mas que foi obrigada a abandoná-la por pressão da própria VW. A Dacon, na mesma ocasião, desenvolveu os Karmannghia Porsche. Porém, a falta de apoio da VW também acabou fazendo a concessionária autorizada paulistana abandonar as pistas. Mas os irmãos Fittipaldi aproveitaram o crescimento das vendas do Fusca no mercado brasileiro e passaram a importar e desenvolver “veneno” para os besouros de pista o que acabou contribuindo para o surgimento de uma nova geração de pilotos brasileiros nos anos setenta.
Nos anos setenta, o apoio oficial da Volkswagen possibitou a criação da Fórmula Super-vê, tanto na Europa como no Brasil. A categoria acabou revelando nomes como Nelson Piquet, campeão em 1976
Aposta no motor a ar
Na mesma ocasião, o falecimento de Heinrich Nordhoff, ocorrido em 12 de abril de 1968, Sexta-feira Santa, acabou provocando uma verdadeira revolução na VW, inclusive no que se refere às competições. Uma das primeiras decisões de Kurt Lotz, o sucessor de Nordhoff, foi estreitar as relações com a Porsche. As duas empresas, que já estavam desenvolvendo em conjunto o projeto do esportivo Vw-porsche, assinaram um acordo para o desenvolvimento do projeto EA-266, aquele que deveria ser o substituto do Fusca também equipado com motor refrigerado a ar. EA são as iniciais de Entwicklungsarbeit, trabalho de desenvolvimento em alemão.
Por isso, segundo consta, a VW chegou a adiantar uma vultosa verba para a Porsche poder concluir a montagem de 25 unidades do seu modelo 917, considerado por muitos especialistas como o mais espetacular e imponente carro de corrida já construído. Para homologar o modelo a fim de participar do Campeonato Mundial de Carros Esporte, a Porsche precisava construir rapidamente os carros, que posteriormente vendeu para diversas equipes interessadas. Por traz desta manobra, também havia um objetivo em comum dos dois fabricantes: provar que o motor refrigerado a ar criado por Ferdinand Porsche, além de confiável poderia ser muito potente e equipar um carro muito veloz.
Equipado com um motor boxer de 12 cilindros, inicialmente com 4,5 litros, posteriormente aumentado para 5 litros, o Porsche 917 marcou época nas pistas dominando facilmente os campeonatos de 1971 e 1972, de tal forma que a FIA – Federação Internacional do Automóvel – resolveu mudar o regulamento e baniu os “monstros”
de Stuttgart das pistas. Mesmo assim, a Porsche, com o apoio da Audi, resolveu levar seus 917 para o torneio americano Can-am. Lá, equipado com turbocompressores, o 917 superou a potência de 1.000 cv. Foi o primeiro automóvel a alcançar esta marca e passou a dominar a série nos anos seguintes.
Outra mudança ocorrida nos anos setenta foi o apoio direto da VW ao automobilismo esportivo com a criação da Fórmula Super-vê, tanto na Europa, como aqui no Brasil. A nova categoria também utilizava o motor boxer, mas de 1.600 cm³, bem mais potente que o da Fórmula Vê. Esta categoria servia de degrau para a Fórmula 3 e conseguiu revelar diversos pilotos. O mais bem-sucedido deles foi Nelson Piquet, que após conquistar o título brasileiro da categoria em 1976 decidiu tentar a carreira internacional na Fórmula 3 europeia. Um ano e meio depois, assim como já havia feito Emerson Fittipaldi, Piquet chegava à Fórmula 1, categoria na qual iria conquistar três títulos mundiais, em 1981, 1983 e 1987.
O fim da produção do Fusca na Europa, em 1978, também significou o fim da categoria, inclusive aqui no Brasil, onde ela foi disputada de 1974 a 1980. Mas nas pistas brasileiras, os Fusquinhas continuaram correndo durante as décadas de 1980 e 1990. E, ainda hoje, pode-se encontrar Fuscas participando esporadicamente de competições nas nossas pistas. Este espírito também é preservado na Europa, onde atualmente é organizado um popular campeonato denominado Fun Cup.
Esta categoria, que tem provas nas principais pistas do continente, é disputada por carros especiais com chassi tubular e motor VW de 1.600 cm³ de refrigeração líquida montado entre-eixos, mas as carrocerias são cópias perfeitas do Fusca feitas em plástico reforçado com fibra de vidro. Mesmo com as grandes diferenças técnicas, pode-se afirmar que o “espírito esportivo” do besouro continua bem vivo. ❖