Jornal de Negócios

A encenação de uma cambalhota

- ADOLFO MESQUITA NUNES com o novo Acordo Ortográfic­o Este artigo está em conformida­de

Foi preciso que o setor da cultura saísse à rua para que o primeiro-ministro se decidisse a aumentar as verbas para o apoio às artes. Foram os pedidos do Bloco ou do PCP durante o Orçamento? Não. É verdade que estes partidos apresentar­am propostas de aumento de verbas, mas o PS fez orelhas moucas e suborçamen­tou o apoio às artes apesar de toda a propaganda em contrário. Foram os protestos do Bloco ou do PCP depois desse chumbo? Não. Comunistas e bloquistas aceitaram o chumbo das suas propostas e aprovaram calmamente o Orçamento, aceitando a suborçamen­tação e não fazendo do reforço de verbas uma condição essencial para o viabilizar. Foi a voz de deputados de esquerda que se juntaram aos protestos? Não. Comunistas e bloquistas juntam-se a qualquer protesto que lhes permita disfarçar a coautoria do Orçamento e o PS sabe que a hipocrisia de Catarina Martins na manifestaç­ão do 1% para a cultura, 1% que ela considerou dis- pensável na hora de negociar o Orçamento, é tão gritante e que pouco a qualifica. Aliás, aproxima-se um novo Orçamento, que Catarina Martins pode chumbar se não tiver lá garantido o 1%. Querem uma aposta sobre o que vai acontecer? Foram os pedidos do secretário de Estado, o único que parece ter noção do que está a fazer? Não. É evidente que o modelo exigiria reforço de verbas e é impossível pensar que o secretário de Estado se não bateu por ele. Debalde, já se sabe, que isso pouco interessou ao primeiro-ministro e nenhum dos partidos de esquerda se atravessou por ele. Foram os pedidos do ministro, que ninguém vê ou sente sempre que se fala em criação e programaçã­o e estratégia no setor da cultura? Não. Duvida-se até que neste processo tenha tido voz; e se a teve foi demasiado afónica para que o primeiro-ministro a ouvisse. Foi apenas a rua a obrigar o primeiro-ministro a perceber o que se passava. Neste processo, todas as vozes foram ignoradas pelo primeiro-ministro, tudo para chegarmos ao magnânimo gesto de abertura dos cordões à bolsa, numa sucessão de aumentozin­hos, três, mostrando que neste Governo também há orçamentos retificati­vos. O que dizer de tudo isto, desta indisponib­ilidade do primeiro-ministro para ouvir o secretário de Estado, o que evitaria estas cenas, e da rapidez com que, por medo a um setor tão mediático, o primeiro-ministro mudou de opinião? Nada que não se soubesse já: para o primeiro-ministro o que conta não é a razão, a lógica, a substância, mas apenas a aparência, a paz mediática; se assim não fosse, a cambalhota não teria existido sequer, e os reforços de verbas não teriam sido anunciados aos bochechos. Sucede que nem todos os setores têm a mesma voz mediática, e por isso nem todos podem perturbar a paz mediática por que se norteia o Governo. A esses resta aceitar os cortes e as cativações, que não há quem os ouça dizer em horário nobre, como se ouviu aSão José Lapa, que precisam de pagar arenda, como se fossem apenas os agentes culturais a terem renda para pagar (já nem vou ao facto de estes apoios não terem por objeto as rendas de casa). Mas para o país mediático talvez sejam, e isso chega para o Governo. Este modelo aprovado em Conselho de Ministros tem virtualida­des e vários aspetos problemáti­cos relevantes, acomeçar pelanão separação entre entidades de criação e projetos de acolhiment­o e programaçã­o. Há por isso muito a criticar. Mas há nele um esforço de atualizaçã­o de algo que há muito precisa de ser revisto. A reação epidérmica do setor da cultura encarregou-se de deitar esse esforço fora, garantindo o “status quo”. E talvez o “status quo” da cultura interesse a muito mais gente do que se pensa: há no setor quem passe a vida a criticar só para garantir que nada possa mudar. E o Governo, que devia estar a aperfeiçoa­r o modelo, deixou-se ficar pelas verbas, como se nada fosse.

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