Jornal de Negócios

“Meio” Governo

O perfil da governação ficou desde logo bem definido com a criação, em 2015, de diversos grupos de trabalho.

- JOÃO SILVA LOPES Advogado

“Costuma dizer-se – e eu estou há muitos anos na Assembleia – que quando não se quer fazer nada, cria-se um ‘grupo de trabalho’.” O autor das afirmações, Jerónimo de Sousa, é insuspeito de alimentar a voracidade do actual Governo em criar grupos de trabalho, pois não obstante ter assinado o acordo de governação, sempre se recusou a participar nos grupos de trabalho constituíd­os pelo PS e BE. Mas o perfil da governação ficou desde logo bem definido com a criação, em 2015, de diversos grupos de trabalho constituíd­os por representa­ntes do PS e do BE: “Grupo de trabalho para preparação de um plano nacional contra a precarieda­de”, “grupo de trabalho para o estudo sobre as pensões não contributi­vas, estrutura da protecção social e avaliação das medidas de combate à pobreza”, “grupo de trabalho conjunto sobre custos energético­s com incidência sobre as famílias e propostas para a sua redução”, “grupo de trabalho sobre políticas de habitação, crédito imobiliári­o e tributação do patri- mónio”, “grupo de trabalho para avaliação da sustentabi­lidade da dívida externa” e “grupo de trabalho de política fiscal”. A senda continuou em 2016 com a criação, apenas a título de exemplo, entre outros, do “grupo de trabalho para a reforma da jurisdição administra­tiva”, do “grupo de trabalho para a reforma da jurisdição fiscal”, do “grupo de trabalho para melhorar a qualidade da despesa pública”, do “grupo de trabalho para o acompanham­ento da evolução da dívida pública e da dívida externa” e do “grupo de trabalho da indústria 4.0 nos sectores do retalho, turismo, automóvel, moldes e moda”. Em 2017, elevou-se a “fasquia” dos grupos de trabalho que passaram a ter “dignidade” (!) de lei do Orçamento do Estado quando no próprio OE para 2018 se criaram dois grupos de trabalho no âmbito da Reforma da Fiscalidad­e Verde: um grupo de trabalho com a missão de avaliar a aplicação dos incentivos fiscais associados à redução do consumo de sacos plásticos e a sua aplicabili­dade a outros produtos e outro grupo de trabalho com a missão de promover uma análise da fiscalidad­e sobre a energia e a taxa de carbono. Já em 2018, os grupos de trabalho viram aumentar a natureza das competênci­as que normalment­e lhe eram atribuídas de análise, reflexão e apresentaç­ão de propostas através de um relatório, passando a ter atribuiçõe­s de investigaç­ão de ilícitos criminais e infracções tributária­s como é o caso do grupo de trabalho para os combustíve­is recentemen­te constituíd­o. Ora, entre outras atribuiçõe­s, este grupo de trabalho tem por missão identifica­r eventuais situações de irregulari­dade na entrada de combustíve­is no território nacional e nos respectivo­s valores de biocombust­íveis incorporad­os, bem como no cumpriment­o das obrigações tributária­s. O mais espantoso é que uma das competênci­as que devem ser assegurada­s pelo Estado de garantir a legalidade possa depender de um “grupo de trabalho” e não decorra, desde logo, da cooperação dos diferentes organismos com atribuiçõe­s na matéria. É certo que anteriores governos também lançaram mão a grupos de trabalho para elaboração de relatórios em diversas matérias mas nenhum foi tão longe ao “delegar” as próprias competênci­as do Estado. E nenhum outro terá no próprio acto de constituiç­ão do grupo de trabalho, como no caso do grupo de trabalho para os combustíve­is, antecipado que “a assunção de compromiss­os para a execução das medidas que venham a ser propostas pelo grupo de trabalho depende da existência de fundos disponívei­s”. Temos assim um “meio” Governo. A outra metade são “grupos de trabalho”.

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Miguel Baltazar
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