A liberdade de morrer: complexidade e contradição
Não há nada mais perigoso e indigno, para um liberal, do que esta burocratização da morte.
Quem defendeu os projectos de despenalização da eutanásia chumbados na AR utilizou, como argumento principal, a liberdade. Para um liberal, como eu sou, é um argumento cativante. Mas a tese da eutanásia como derivação automática do liberalismo não me convence. O tema é mais complexo do que isso. Não é preciso ser comunista ou comunitarista para saber que há uma diferença entre aquilo que cada um faria em determinada situação e aquilo que uma sociedade deve promover ou permitir, mesmo a pessoas em situações limite. Para um liberal, essa diferença deve ser o mais pequena possível, mas só um liberal utópico propõe que ela seja inexistente. Uma coisa é a empatia, ou a compaixão, ou o reconhecimento de um direito moral às pessoas em situação de sofrimento agudo e incurável (eu provavelmente desejaria morrer se estivesse numa dessas situações). Outra coisa é o abalo que uma decisão política e a sua justificação intelectual podem provocar no quadro de valores e na vocação de uma sociedade. A ideia de que um liberal tem necessariamente de ser a favor da eutanásia é contraditória com o próprio liberalismo. A base moral da liberdade individual enquanto valor político é a vida como “dom” (divino ou não, pouco interessa): cada pessoa é um ser único e irrepetível, e a sua dignidade é um valor intrínseco e autónomo. As várias liberdades – individuais e políticas, cívicas e económicas – são uma consagração da vida. É a liberdade que realiza a vida, não o contrário. A dignidade humana é, por isso, um valor imutável e não contingente. Isto tem duas consequências. A primeira é a de que um liberal recusa o pressuposto de que o sofrimento diminui a dignidade da vida (e de que a “morte digna”, pressuposto dos projectos chumbados, é aquela que serve para terminar com o sofrimento). A segunda consequência, mais importante, é a de que a inviolabilidade da vida humana é um princípio estruturante do constitucionalismo liberal, e nenhum verdadeiro liberal está disponível para aceitar brechas a esse princípio, muito menos se isso implicar o reconhecimento ao Estado da legitimidade, por mais ténue que seja, para decidir sobre o momento da morte de uma pessoa (que não se mantém viva artificialmente ou por obstinação terapêutica). Não há nada mais perigoso e indigno, para um liberal, do que esta burocratização da morte. Ela até pode ser a pedido, mas no fim da linha é o Estado que organiza, despacha, reúne, aprecia, dá parecer, defere ou indefere. Eu não quero um sistema em que o Estado – o mesmo Estado que tem por vocação promover a saúde e prevenir o suicídio – passa a ter pela primeira vez uma palavra, a última palavra, sobre se uma vida tem ou não dignidade suficiente. Essa é uma linha vermelha que eu, como liberal (como pessoa, antes de ser cidadão), não aceito ultrapassar. Não é por saber onde se vai parar: é precisamente por não saber onde se vai parar. Aliás, o argumento da liberdade é contraditório com os próprios projectos apresentados. Se a eutanásia é para casos raríssimos, então talvez a eutanásia seja só uma questão de compaixão ou caridade. O que não é, por certo, é essencialmente uma questão de liberdade. Para os projectos, a liberdade é a excepção, não a regra. É por isso que é tão elucidativa a insistência dos seus defensores na tese da liberdade. Ela mostra que esses projectos não eram um fim em si mesmo, mas o primeiro passo de um caminho com consequências imprevisíveis na depreciação do valor da vida. Para isso, com este liberal não contam.