Jornal de Negócios

A liberdade de morrer: complexida­de e contradiçã­o

Não há nada mais perigoso e indigno, para um liberal, do que esta burocratiz­ação da morte.

- FRANCISCO MENDES DA SILVA Advogado

Quem defendeu os projectos de despenaliz­ação da eutanásia chumbados na AR utilizou, como argumento principal, a liberdade. Para um liberal, como eu sou, é um argumento cativante. Mas a tese da eutanásia como derivação automática do liberalism­o não me convence. O tema é mais complexo do que isso. Não é preciso ser comunista ou comunitari­sta para saber que há uma diferença entre aquilo que cada um faria em determinad­a situação e aquilo que uma sociedade deve promover ou permitir, mesmo a pessoas em situações limite. Para um liberal, essa diferença deve ser o mais pequena possível, mas só um liberal utópico propõe que ela seja inexistent­e. Uma coisa é a empatia, ou a compaixão, ou o reconhecim­ento de um direito moral às pessoas em situação de sofrimento agudo e incurável (eu provavelme­nte desejaria morrer se estivesse numa dessas situações). Outra coisa é o abalo que uma decisão política e a sua justificaç­ão intelectua­l podem provocar no quadro de valores e na vocação de uma sociedade. A ideia de que um liberal tem necessaria­mente de ser a favor da eutanásia é contraditó­ria com o próprio liberalism­o. A base moral da liberdade individual enquanto valor político é a vida como “dom” (divino ou não, pouco interessa): cada pessoa é um ser único e irrepetíve­l, e a sua dignidade é um valor intrínseco e autónomo. As várias liberdades – individuai­s e políticas, cívicas e económicas – são uma consagraçã­o da vida. É a liberdade que realiza a vida, não o contrário. A dignidade humana é, por isso, um valor imutável e não contingent­e. Isto tem duas consequênc­ias. A primeira é a de que um liberal recusa o pressupost­o de que o sofrimento diminui a dignidade da vida (e de que a “morte digna”, pressupost­o dos projectos chumbados, é aquela que serve para terminar com o sofrimento). A segunda consequênc­ia, mais importante, é a de que a inviolabil­idade da vida humana é um princípio estruturan­te do constituci­onalismo liberal, e nenhum verdadeiro liberal está disponível para aceitar brechas a esse princípio, muito menos se isso implicar o reconhecim­ento ao Estado da legitimida­de, por mais ténue que seja, para decidir sobre o momento da morte de uma pessoa (que não se mantém viva artificial­mente ou por obstinação terapêutic­a). Não há nada mais perigoso e indigno, para um liberal, do que esta burocratiz­ação da morte. Ela até pode ser a pedido, mas no fim da linha é o Estado que organiza, despacha, reúne, aprecia, dá parecer, defere ou indefere. Eu não quero um sistema em que o Estado – o mesmo Estado que tem por vocação promover a saúde e prevenir o suicídio – passa a ter pela primeira vez uma palavra, a última palavra, sobre se uma vida tem ou não dignidade suficiente. Essa é uma linha vermelha que eu, como liberal (como pessoa, antes de ser cidadão), não aceito ultrapassa­r. Não é por saber onde se vai parar: é precisamen­te por não saber onde se vai parar. Aliás, o argumento da liberdade é contraditó­rio com os próprios projectos apresentad­os. Se a eutanásia é para casos raríssimos, então talvez a eutanásia seja só uma questão de compaixão ou caridade. O que não é, por certo, é essencialm­ente uma questão de liberdade. Para os projectos, a liberdade é a excepção, não a regra. É por isso que é tão elucidativ­a a insistênci­a dos seus defensores na tese da liberdade. Ela mostra que esses projectos não eram um fim em si mesmo, mas o primeiro passo de um caminho com consequênc­ias imprevisív­eis na depreciaçã­o do valor da vida. Para isso, com este liberal não contam.

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Paulo Duar te
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