Jornal de Negócios

O general que assustou o Estado Novo

As eleições presidenci­ais de 8 de Junho de 1958 foram um autêntico abanão ao regime salazarist­a. Humberto Delgado, qual David contra Golias, apresentou-se como o candidato independen­te, que congregava o apoio da oposição e arrastou multidões. Ficou conhec

- FILIPA LINO flino@negocios.pt

Na manhã de 10 de Maio de 1958, o Café Chave d’ Ouro, no Rossio, foi pequeno para tanta gente. No local escolhido pelo general Humberto Delgado para lançar a candidatur­a às eleições presidenci­ais, que ocorreriam um mês depois, o ambiente era vibrante, como descreve Frederico Delgado Rosa, neto mais novo e biógrafo daquele que ficou conhecido como o “General sem Medo”. Havia “uma agitação nervosa de cadeiras e ombros a roçarem-se uns nos outros, de apertos de mão efusivos, ramos de flores e nomes gritados através do vasto salão de chá”, escreveu no livro “Humberto Delgado: biografia do General sem Medo”. Na assistênci­a, estava a imprensa portuguesa e estrangeir­a. Foi a pergunta de um jornalista que suscitou a frase que ficou para a História. O correspond­ente em Lisboa da agência France-Presse, Lindorfe Pinto Basto, questionou: “Sr. general, se for eleito Presidente da República, que fará do Sr. Presidente do Conselho?” O silêncio instalou-se por uns segundos. Delgado respondeu: “Obviamente, demito-o!” Salazar estava no poder há mais de trinta anos e tinha o estatuto de intocável. Raul Rêgo, que anos mais tarde viria a ser director do jornal República, era o assessor de imprensa na campanha de Delgado. Foi um dos que o ajudaram a preparar-se para conferênci­a de imprensa. Na véspera, tinha estado a treinar com ele as respostas às perguntas mais difíceis. A mais esperada era precisamen­te a que foi colocada pela agência de notícias francesa. Na comissão de apoio à candidatur­a estavam nomes como Vieira de Almeida, António Sérgio, Jaime Cortesão e Mário Soares, que o aconselhar­am a dar uma resposta evasiva. Mas Delgado não seguiu a recomendaç­ão e acendeu um rastilho.

O general americaniz­ado

Em 1958, Humberto Delgado era o mais jovem general das forças armadas portuguesa­s, com 51 anos. Tinha acabado de chegar de Washington, onde fora durante alguns anos adido militar na Embaixada de Portugal e membro do Comité dos Representa­ntes Militares da NATO. A experiênci­a mudou-o. Foi confrontad­o com um outro modelo de sociedade. “Penso que houve um lento abrir de olhos. Nos Estados Unidos e nas viagens que fez na sua actividade de diplomata militar, abriu os olhos para a democracia”, afirmou a filha do general, Iva Delgado, numa entrevista ao Diário de Notícias, em 2001. O general, que até então era um homem do regime, quando regressou, começou a pôr em causa a forma como o país estava a ser liderado. Chegou mesmo a afirmar a Marcello Caetano, ministro da Presidênci­a do Conselho dos Ministros: “Salazar está velho, está gasto, está fora de moda!” Estava determinad­o a mudar o estado das coisas, por isso, quando recebeu o convite da oposição democrátic­a para

se apresentar como candidato independen­te às eleições, não hesitou. Naquela conferênci­a de imprensa, no Chave d’Ouro, “transformo­u-se (...) numa referência para o povo português pela forma como desafiou directamen­te Salazar”, escreve Frederico Delgado Rosa. Foi depois desta frase ousada que começou a viajar pelo país em campanha. O momento alto aconteceu a 14 de Maio quando chegou ao Porto e foi “engolido” pelo mar de gente que o esperava. Os anos na América deram-lhe uma postura na campanha que contrastav­a com o cinzentism­o político que imperava no país. “Ele tinha muita noção do espectácul­o. (...) Foi o primeiro político a trepar para o tejadilho de um automóvel e a abrir os braços. Fez política na rua, coisa que ninguém tinha feito”, recorda Iva Delgado na entrevista ao DN. No regresso a Lisboa, também havia uma multidão a esperá-lo, de Santa Apolónia ao Terreiro do Paço. Mas, desta vez, o regime não foi apanhado despreveni­do. A caravana foi desviada pela PIDE para a zona oriental da cidade. Enquanto isso, muitos apoiantes do general nas ruas foram perseguido­s e espancados pela GNR. Dias depois, após um comício no Liceu Camões, voltaram a repetir-se as cenas de violência. Era o regime a mostrar a sua força. Na corrida presidenci­al, Humberto Delgado tinha como adversário o almirante Américo Tomás, o candidato da União Nacional, o único partido legal no país.

“Fui roubado!”

A 8 de Junho de 1958, o “General sem Medo” foi derrotado nas urnas. Teve 23% dos votos. Delgado considerou o resultado fraudulent­o. “Fui roubado!”, afirmou. No seu livro de memórias “Meu pai, o General sem Medo”, Iva Delgado revela que chegou a acreditar que o pai iria ganhar as eleições porque “havia uma dinâmica de vitória”. Humberto Delgado “atraía multidões”, refere, e “todos percebemos que o povo queria uma mudança. O Salazar também percebeu.” Entendeu tão bem que, em 1959, mudou o sistema de eleição do Presidente da República, que passou a ser escolhido num colégio eleitoral restrito. Nesse mesmo ano, Delgado partiu para o exílio depois de se refugiar na Embaixada do Brasil, em Lisboa. O “General sem Medo” morreu a 13 de Fevereiro de 1965, assassinad­o numa emboscada montada pela PIDE em Los Almenes, perto de Olivença (Espanha), que ganhou o nome de código Operação Outono. Agora que passam 60 anos das históricas eleições presidenci­ais de 1958, a Câmara Municipal de Torres Novas, terra natal do general, apresenta uma exposição biográfica de Humberto Delgado, na Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, a partir da colecção particular de João Bracons. Esta noite, é apresentad­o, no auditório da biblioteca, o filme de Bruno Almeida, “Operação Outono”, sobre a intriga da PIDE para matar o homem que abalou o Estado Novo.

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H U MBERTO DE LGAD O: MOSTRA BI BLI OG RÁFI CA Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, Torres Novas Até 13 de Julho

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