Ainda sou uma romântica
É muito difícil uma pessoa da minha geração, que passou por tantas coisas, não acreditar que é possível que a mudança aconteça.
Ainda não perdeu a alegria. Podia ser outra definição de romantismo: contra todas as evidências, contra a falta de apoios, contra as promessas goradas de sucessivos governos, continuar a ter alegria. É da geração que deixou de acreditar em Deus para acreditar nos homens. Começou a fazer teatro com a irmã Fernanda e hoje trabalha com a filha Inês. Criaram juntas o Espaço das Aguncheiras, em Sesimbra. Era talvez para onde se dobrava o arco do tempo, porque já depois do 25 de Abril tinha feito parte de um movimento de descentralização do teatro em Portugal. Actriz, encenadora, agitadora, São José Lapa é uma figura fundamental do teatro português. Acaba de estrear, no Clube Estefânia – Escola de Mulheres, “As Lindas Bocas”. Um novo espectáculo sobre os velhos temas das questões de género, porque as mudanças são sempre mais lentas do que se desejaria.
1.Este espectáculo [“As Lindas Bocas”] parte de preocupações actuais com questões de género. Por exemplo, com a violência doméstica. A violência doméstica é tal que chegámos a Junho e já morreram oito mulheres às mãos dos companheiros ou maridos ou namorados. É incompreensível. Como é que se continua a matar por ciúme ou por raiva? E como é que elas deixam? É um espectáculo para criar debate com as pessoas no final. Vamos tentar que [a peça] vá em itinerância por muitos sítios de Portugal, que vá a pequenas localidades, onde se possa discutir com os espectadores. Há uns anos, chamar-se-ia a isto agitação e propaganda. Agora é só agitação. Uma boa agitação. Propaganda não, porque já está tudo tão propalado. Mas as pessoas, ainda assim, não querem ver.
2.Quando comecei no teatro, quase não havia encenadoras. Hoje há muitas, mas directoras de teatro praticamente não há. É um sistema que continua. Quase desde o princípio da minha vida no teatro – quase sem querer – acabei por encenar. Interrompi quando fui para o Teatro Nacional. O Nacional era piramidal e era absolutamente patriarcal. Nenhuma mulher se atrevia a encenar. Um dia, sugeri: posso encenar uma peça? Consegui-o com o Carlos Avilez, e foi quando, em 1995, encenei a Griselda Gambaro, uma autora argentina que viveu muitos anos em Espanha, fugida da ditadura. Era uma produção Nacional/CCB e estreámos no CCB. Foi um espectáculo feito quase só com mulheres. Curiosamente, foi nesse ano que a minha irmã [a encenadora Fernanda Lapa] abriu a [companhia de teatro] Escola de Mulheres. Esse nosso interesse pelos temas das mulheres talvez tivesse que ver com a governação matriarcal em nossa casa.
3.A minha avó era professora. O meu avô morreu muito cedo e, portanto, ela teve de educar as duas filhas. Também lhe morreu o filho. A minha avó era de Viseu, de uma família com advogados e farmacêuticos. Tinha algum sustento e aguentou-se bem, mas também porque era de um grande rigor. Vê-se até nas fotografias dela. Eu, quando faço papéis de tias, imito um bocado a minha avó. Lembro-me sempre dela. Tenho aquela imagem, aquela memória. A minha mãe veio para Lisboa muito cedo. Veio para um colégio interno com 13 anos e isso também a endureceu. Depois, tirou o curso superior de piano e de canto. Sempre a ouvi queixar-se da vida doméstica. O meu pai, ao princípio, tinha economicamente alguma defesa mas depois, a determinada altura, as defesas deixaram de existir, a minha mãe
Como é que se continua a matar por ciúme ou por raiva?
já não tinha empregada e teve de fazer tudo – como nós agora fazemos. O meu pai era um “dandy” sem dinheiro, maravilhoso. De olho azul e muito bem-disposto. Queria era que toda a gente estivesse bem-disposta e não fazer nada. A minha mãe não conseguiu avançar na sua carreira de concertista e isso foi algo que a tornou azeda de alguma maneira. Mas fazia muita coisa: nunca esteve parada até aos 90 anos. Penso que tudo isso nos marcou, a mim e à minha irmã.
4.Teria 17 ou 18 anos quando li “Mémoires d’une jeune fille rangée” (“Memórias de uma jovem bem-comportada”), da Simone de Beauvoir. Foi um estaladão. A partir daí, fui questionando. Estávamos na altura da guerra. O meu primeiro namorado foi para Moçambique. O meu segundo namorado foi para a Guiné. Aos 21 anos, saí de casa. Levei tudo numa camioneta para a casa arrendada onde ainda vivo. É um último andar com vista de rio. Era a visão do sótão que me atraía – a visão romântica dos sótãos de Paris, das mudanças do Maio de 68. No Maio de 68, eu tinha 17 anos, era uma miúda, mas bateu-me. Aos 21 anos, sairmos para a nossa própria casa não era algo comum. Estávamos em 72. Como não tinha dinheiro para pagar a casa sozinha, tinha duas amigas que a dividiam comigo – e ainda me dou com uma delas ao fim destes anos todos. Vivia-se um ambiente em que se sentia que estava tudo a rebentar: era a América com a guerra do Vietname; era França e o que tinha acontecido com a Argélia; eram as lutas de independência em África. Estava iminente qualquer coisa. No 25 de Abril, eu não tinha telefone em casa e veio uma amiga bater-me à porta: “São José, estão tropas na rua, vamos embora.” Em baixo de minha casa havia um telefone, uma daquelas cabinas à inglesa, e telefonei para casa dos meus pais. O meu pai: “Vai para casa! Às 10 horas da manhã, já estava no Largo do Carmo.”
5.O Espaço das Aguncheiras, que dirijo com a minha filha [Inês Lapa Lopes], fica entre o Meco e o Cabo Espichel. É uma quinta de quase três hectares. Quando fomos para lá foi para fazer quase um arco de tempo. Em 1979, tinha ido para Viseu para a descentralização teatral com a minha filha, com o pai da minha filha e com um gru- po de actores, músicos, arquitectos, havia de tudo. E o arco do tempo fechou-se comprando esta quinta, com o projecto de poder fazer cultura teatral [fora de Lisboa]. Abrimos há pouco mais de 10 anos. Encenámos autores portugueses: Hélia Correia, Jaime Salazar Sampaio, Abel Neves. E fizemos os Pinters, os Shakespeares, os Tchecovs, Becket. Fomos a um festival na Irlanda, no lugar por onde andou o Becket e o Oscar Wilde. Fizemos de tudo. Isto, sempre a concorrer à Direcção- Geral das Artes. Tivemos apoio um único ano. É algo que me ultrapassa. Tenho 67 anos. Se quiserem, podem dizer: “A senhora está arrumada, está na terceira idade”, mas a outra pessoa com quem dirijo o Espaço das Aguncheiras é jovem. A Inês é uma jovem, com 43 anos. E ela é o grande motor do Espaço. Viseu agora avançou. Sesimbra ainda ali está muito acantonada. Está perto de Lisboa, mas longe. Quando começámos a fazer os primeiros espectáculos, muitas das pessoas que vieram ver nunca tinham visto teatro. E algumas delas nunca tinham ido a Lisboa.
6.É muito difícil uma pessoa da minha geração, que passou por tantas coisas, não acreditar que é possível que a mudança aconteça. Acontece. Agora, custa um bocado. Custa sobretudo para aqueles que queriam que as coisas fossem más rápidas. Lembro-me de que, quando arrendei a minha casa, ela custava-me dois contos e quinhentos – era caríssima na altura. Nem casa de banho tinha, só tinha um WC. Portanto, era tudo pelo sonho do sótão. Era uma romântica. Ainda sou – mas com tristeza, às vezes. Querendo reagir contra um romantismo serôdio, não perco a alegria das coisas. Não posso perder.