Os impostos como fantoche dos políticos
Antigamente os liberais e os marxistas distinguiam-se porque os primeiros queriam um Estado fiscal e os segundos queriam um Estado proprietário. Os liberais eram pela economia de mercado, que devia financiar o Estado através dos impostos. Os marxistas, por seu lado, eram pela apropriação colectiva dos meios de produção: o Estado e a economia confundiam-se; colectar impostos seria, logicamente, um exercício redundante.
Hoje em dia, pelo contrário, já somos quase todos pela economia de mercado. Na maioria das latitudes, os que ainda se dizem “marxistas”, ou que utilizam formulações mais oblíquas, eufemísticas e envergonhadas (como a “filiação” ou a “inspiração” marxista), por regra acenam a bandeira da propriedade estatal apenas nos chamados “sectores estratégicos”. E, mesmo aí, fazem-no sem grande proselitismo, sem grande exaltação, e tratando os tais “sectores estratégicos” como um reduto cada vez mais exíguo.
É verdade que a crise trouxe um crescimento do discurso anticapitalista, mas ainda está por demonstrar que essa inflamação retórica substituiu, na esquerda maioritária, a síntese histórica que a “terceira via” fez da economia de mercado e da justiça social. Esta evolução à esquerda reduziu a tendência geral da política para a proibição. A esquerda ainda é “contra” muitas coisas, bem sei, mas hoje a esquerda diz ser contra muito mais coisas do que aquelas que de facto quer proibir (o mesmo se passa à direita, aliás).
Veja-se o Bloco de Esquerda, esse repositório de vários despojos ideológicos do pós-marxismo. O Bloco, cheio de ênfase revolucionária, diz que é “contra a especulação imobiliária”. Mas será mesmo? Se for, é só um bocadinho. O Bloco não quer propriamente proibir a “especulação”, só quer “desincentivá-la”. Para isso propõe umas afinações, pequenas e burguesas, aos códigos fiscais. Porque, como é evidente, de Louçã a Catarina Martins, todos os bloquistas sabem que aquilo a que chamam “especulação imobiliária” mais não é do que a prática de negócios legítimos e correntes. Uma prática à qual, de resto, há no Bloco quem se dedique.
O facto de a esquerda e, antes, a direita terem aceitado o primado das liberdades económicas foi uma boa notícia que o século XX nos trouxe. É muito melhor viver num mundo em que se discutem incentivos do que noutro em que se discutem proibições. Mas este mundo também tem os seus problemas. Um deles é a irracionalidade dos sistemas fiscais. Quando os políticos passam a preferir incentivar ou desincentivar comportamentos, em vez de os proibir, a exibição das boas intenções passa da lei penal para a lei fiscal.
Isto não significa que os impostos não têm preocupações políticas. É evidente que têm: todos os sistemas fiscais concretizam prioridades políticas e os governos têm de se preocupar com ideia da justiça fiscal tanto quanto se preocupam com a eficiência da captação de receita. Só que uma coisa é os impostos serem determinados por opções de fundo, estudadas e discutidas seriamente; outra é o sistema fiscal ser o palco do pingue-pongue político quotidiano, e ser construído e desconstruído permanentemente à medida das questiúnculas pícaras de cada dia, como um fantoche que os políticos utilizam, no jogo obsessivo das popularidades, para provarem que as suas proclamações não têm a vacuidade que aparentam. O resultado é o que se conhece: os sistemas fiscais, na sua maioria, são ineficientes, injustos e obsoletos.
Não há melhor ilustração desta triste realidade do que a “taxa Robles” contra a “especulação imobiliária”. Quando foi apresentada pelo Bloco de Esquerda, para compensar a polémica do seu vereador de Lisboa, percebeu-se imediatamente o quão a ideia era caricata. Desde logo porque em nada contribuiria para combater a especulação imobiliária e reduzir os preços da habitação. Bem pelo contrário: como quase toda a gente disse, incluindo no PS e no Governo, a medida desincentivaria a oferta de imóveis, o que só ajudaria a que os preços aumentassem. Nada que, como é óbvio, tivesse importunado o Bloco: a “taxa Robles” não era uma ideia contra a especulação; era uma ideia contra as sondagens.
Hoje a esquerda diz ser contra muito mais coisas do que aquelas que de facto quer proibir (o mesmo se passa à direita, aliás).
O resultado é o que se conhece: os sistemas fiscais, na sua maioria, são ineficientes, injustos e obsoletos.