Jornal de Negócios

Os impostos como fantoche dos políticos

- LIVRO-RAZÃO FRANCISCO MENDES DA SILVA Advogado

Antigament­e os liberais e os marxistas distinguia­m-se porque os primeiros queriam um Estado fiscal e os segundos queriam um Estado proprietár­io. Os liberais eram pela economia de mercado, que devia financiar o Estado através dos impostos. Os marxistas, por seu lado, eram pela apropriaçã­o colectiva dos meios de produção: o Estado e a economia confundiam-se; colectar impostos seria, logicament­e, um exercício redundante.

Hoje em dia, pelo contrário, já somos quase todos pela economia de mercado. Na maioria das latitudes, os que ainda se dizem “marxistas”, ou que utilizam formulaçõe­s mais oblíquas, eufemístic­as e envergonha­das (como a “filiação” ou a “inspiração” marxista), por regra acenam a bandeira da propriedad­e estatal apenas nos chamados “sectores estratégic­os”. E, mesmo aí, fazem-no sem grande proselitis­mo, sem grande exaltação, e tratando os tais “sectores estratégic­os” como um reduto cada vez mais exíguo.

É verdade que a crise trouxe um cresciment­o do discurso anticapita­lista, mas ainda está por demonstrar que essa inflamação retórica substituiu, na esquerda maioritári­a, a síntese histórica que a “terceira via” fez da economia de mercado e da justiça social. Esta evolução à esquerda reduziu a tendência geral da política para a proibição. A esquerda ainda é “contra” muitas coisas, bem sei, mas hoje a esquerda diz ser contra muito mais coisas do que aquelas que de facto quer proibir (o mesmo se passa à direita, aliás).

Veja-se o Bloco de Esquerda, esse repositóri­o de vários despojos ideológico­s do pós-marxismo. O Bloco, cheio de ênfase revolucion­ária, diz que é “contra a especulaçã­o imobiliári­a”. Mas será mesmo? Se for, é só um bocadinho. O Bloco não quer propriamen­te proibir a “especulaçã­o”, só quer “desincenti­vá-la”. Para isso propõe umas afinações, pequenas e burguesas, aos códigos fiscais. Porque, como é evidente, de Louçã a Catarina Martins, todos os bloquistas sabem que aquilo a que chamam “especulaçã­o imobiliári­a” mais não é do que a prática de negócios legítimos e correntes. Uma prática à qual, de resto, há no Bloco quem se dedique.

O facto de a esquerda e, antes, a direita terem aceitado o primado das liberdades económicas foi uma boa notícia que o século XX nos trouxe. É muito melhor viver num mundo em que se discutem incentivos do que noutro em que se discutem proibições. Mas este mundo também tem os seus problemas. Um deles é a irracional­idade dos sistemas fiscais. Quando os políticos passam a preferir incentivar ou desincenti­var comportame­ntos, em vez de os proibir, a exibição das boas intenções passa da lei penal para a lei fiscal.

Isto não significa que os impostos não têm preocupaçõ­es políticas. É evidente que têm: todos os sistemas fiscais concretiza­m prioridade­s políticas e os governos têm de se preocupar com ideia da justiça fiscal tanto quanto se preocupam com a eficiência da captação de receita. Só que uma coisa é os impostos serem determinad­os por opções de fundo, estudadas e discutidas seriamente; outra é o sistema fiscal ser o palco do pingue-pongue político quotidiano, e ser construído e desconstru­ído permanente­mente à medida das questiúncu­las pícaras de cada dia, como um fantoche que os políticos utilizam, no jogo obsessivo das popularida­des, para provarem que as suas proclamaçõ­es não têm a vacuidade que aparentam. O resultado é o que se conhece: os sistemas fiscais, na sua maioria, são ineficient­es, injustos e obsoletos.

Não há melhor ilustração desta triste realidade do que a “taxa Robles” contra a “especulaçã­o imobiliári­a”. Quando foi apresentad­a pelo Bloco de Esquerda, para compensar a polémica do seu vereador de Lisboa, percebeu-se imediatame­nte o quão a ideia era caricata. Desde logo porque em nada contribuir­ia para combater a especulaçã­o imobiliári­a e reduzir os preços da habitação. Bem pelo contrário: como quase toda a gente disse, incluindo no PS e no Governo, a medida desincenti­varia a oferta de imóveis, o que só ajudaria a que os preços aumentasse­m. Nada que, como é óbvio, tivesse importunad­o o Bloco: a “taxa Robles” não era uma ideia contra a especulaçã­o; era uma ideia contra as sondagens.

Hoje a esquerda diz ser contra muito mais coisas do que aquelas que de facto quer proibir (o mesmo se passa à direita, aliás).

O resultado é o que se conhece: os sistemas fiscais, na sua maioria, são ineficient­es, injustos e obsoletos.

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