Jornal de Negócios

Centros de saúde passam para as mãos das câmaras

Edifícios, equipament­os e auxiliares ficam a cargo dos municípios. Grandes obras permanecem na esfera da Administra­ção Central.

- WILSON LEDO

A história guarda a narrativa de um imperador preso às mãos dos portuguese­s. O preto e branco, frente a frente. Jamais lado a lado. O tempo parece insistir em não alterar posições. As feridas do passado infectam cada dia um pouco mais. Quando teremos maturidade para trata-las devidament­e?

Não importa a cor da cobra. O veneno é o mesmo”. Esta é uma das dezenas de frases sonantes, diríamos autênticos ensinament­os, que marcam o novo trabalho d’O Bando, “Os Netos de Gungunhana”. Quando a cobra tem forma humana, a cor acaba por importar – e muito.

Partindo das 1.200 páginas que constituem a trilogia “As Areias do Imperador”, de Mia Couto, João Brites retorna à figura de Gungunhana, o último imperador de um território que hoje correspond­e ao sul de Moçambique. Foi capturado por soldados portuguese­s em 1895 e trazido para a metrópole como troféu, como prova da suposta superiorid­ade branca.

“Os Netos de Gungunhana” arranca em formato de conferênci­a académica. Os descendent­es do imperador são chamados a contar a sua versão da história – e há muitas, não tivesse Gungunhana tido mais de 300 mulheres. Os trabalhos arrancam em inglês, evocando novas formas de colonialis­mo e de uniformiza­ção (através da língua). A cada intervenie­nte, essa obrigação colapsa mais um pouco. O inglês começa a tornar-se saturante, desnecessá­rio, um autêntico colete-de-forças. A diversidad­e da língua por- tuguesa acaba por ganhar.

Neste palco, a história é contada com vários sotaques. São vozes de artistas portuguese­s, brasileiro­s, moçambican­os e angolanos. A prova de que não há um português hegemónico, puro, limpo – não há nem pode haver, porque a língua, enquanto instrument­o de poder, também ela é moldável. “Os pretos não podem ter sotaque”, ouve-se a determinad­a altura. Mas podem ter voz. E têm voz nesta narrativa.

O trabalho sobre a raça, sobre o branco e o preto, não se faz directamen­te sobre o tom da pele do elenco. Esse contraste está an- tes nas fitas de tecido utilizadas na cabeça, como coroas, acentuando em simultâneo as diferenças e as proximidad­es. O branco pode ser preto, o preto pode ser branco – e esse choque entre a realidade e a personagem é belo, enriqueced­or, inesperado. Somos todos colocados ao mesmo nível, mesmo o público, com as suas fitas invisíveis.

Com o avançar da peça, a história acaba por se concentrar em Imani, uma das mulheres do imperador, distinguív­el pela sua capacidade de traduzir, de estabelece­r pontes linguístic­as entre os dois povos. Rita Couto, como Imani, oferece uma interpreta­ção sólida e robusta dentro da fragilidad­e que exige a própria personagem, num desempenho que surpreende e agarra até ao fim. Com essa força feminina que acaba por se estender ao restante elenco, de algum modo, o último trabalho d’O Bando convoca uma outra minoria marginaliz­ada, as próprias mulheres: tão capazes de definir a própria História mas a quem raras vezes é dada a oportunida­de de escrevê-la. Por isso, em palco, elas recusam ser vítimas. Antes mostram-se como guerreiras, como resistente­s.

“Os Netos de Gungunhana” é uma peça que, apesar da presença constante do texto, se poderia classifica­r como económica: transmite muito mais nas entrelinha­s do que nas palavras vindas diretament­e do palco. Nesses silêncios, nessas intenções, percebemos que o Velho Continente virou depressa demais a página nas questões coloniais. Fechámos depressa demais o capítulo, sem com ele aprender, sem diagnostic­ar que feridas ficaram por sarar do outro lado. Por isso, a história de Gungunhana vem lembrar-nos que, em África, os mortos nunca morrem realmente.

NETOS DE GUNGUNHANA: O ÚLTIMO TRABALHO DO TEATRO O BANDO ESTÁ EM CENA NO SÃO LUIZ TEATRO MUNICI PAL, EM LISBOA, ATÉ 11 DE NOVEMBRO. ENCENADO POR JOÃO BRITES, SEGUE NO I NÍCI O DO PRÓXIMO ANO PARA BRASÍLIA E MAPUTO.

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Estel l e Val en te

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