Jornal de Negócios

Desabafos sobre o mundo do queijo

- EDGARDO PACHECO

Os portuguese­s tratam o queijo com o devido respeito? A resposta é variável. Se nos compararmo­s com um japonês, talvez; mas se metermos um francês ou um suíço pelo meio, é como a velha história: levamos 15 a zero. E toda a gente tem culpas no cartório – até os jornalista­s.

Sim, eu sei. Todos conhecemos uns queijos especiais e umas queijeiras prendadas. E todos temos um primo que arranja um produto único (muito puro, claro está) e todos sabemos onde fica um ou outro merceeiro que guarda umas coisas especiais. Mas, imaginando um questionár­io aplicado a uma amostra de consumidor­es sobre o número de queijos com denominaçã­o de origem em Portugal, a raça de ovelha permitida no queijo Serra de Estrela, o coagulante usado no queijo de Azeitão ou a diferença entre o queijo Ilha e o queijo São Jorge, haveria de ser muito triste ver o desconheci­mento dos portuguese­s sobre o mundo do queijo. E, todavia, sempre papamos cerca de 11,5 quilos de queijo “per capita” por ano (um francês salta para os 27,3 quilos, já agora).

Há vários responsáve­is por um certo “deixa andar” dos portuguese­s nesta matéria: os produtores, os consumidor­es, a moderna distribuiç­ão, as escolas hoteleiras, os chefes, os poderes políticos a diferentes níveis e – já agora – a própria comunicaçã­o social na área da gastronomi­a, que não liga patavina ao assunto.

Como os culpados são muitos paratão pouco espaço, vamos aos chefes, que são, no meu juízo, aqueles que poderiam contribuir para a inversão rápida deste estado de coisas.

Não tenho a veleidade de conhecer todos os grandes cozinheiro­s do país, mas sempre que tento criar uma lista daqueles que sabem, estudam e se interessam pela matéria, ocorremme dois nomes: Vítor Sobral e Miguel Castro Silva. Notem bem que não estou a dizer que só estes dois chefes trabalham bem o queijo. Não. Estou só a dizer que eles conhecem muito bem os processos de produção dos grandes queijos DOP portuguese­s porque levam a sério a tese de que para se conhecer um produto é preciso chegar a quem o produz e não mandar vir amostras de um distribuid­or. Isto faz muita diferença.

Para que não digam que estou a exagerar sobre a ignorância dos chefes, vou transcreve­r um pequeno parágrafo do livro “Lisboetas”, apresentad­o na semana passada, e da autoria de Nuno Mendes. Numa entrada sobre ‘queijo da Ilha’, escreve-se o se- guinte: “um excelente queijo de vaca, duro e de sabor intenso da ilha de São Jorge nos Açores, que é também conhecido como queijo de São Jorge. Costuma ser usado para ralar e cozinhar. Também pode usar parmesão ou pecorino em substituiç­ão”.

Se isto tivesse sido escrito por um aluno de umaescolah­oteleira, já seria grave, mas um chefe conceituad­o, dono de uma estrela Michelin, fazer tamanha confusão entre um queijo Ilha e um queijo São Jorge, isso, lamento, não é aceitável.

Nem sequer é um detalhe porque não se pode confundir um queijo DOP (São Jorge), feito exclusivam­ente no terroir único da ilha de São Jorge e a partir de leite cru, com caderno de encargos e certificad­o por especialis­tas (estão a ver a diferença?), com outros queijos – o Ilha – que podem ser feitos em quase todas as ilhas açorianas, a partir de leite pasteuriza­do (estão a ver a diferença?) e sem qualquer controlo por uma entidade certificad­ora.

Duas coisas eu sei: 1) Nuno Mendes estámuito bemacompan­hado por outros camaradas seus nesta eterna confusão entre queijo Ilhae queijo São Jorge; 2), estou absolutame­nte certo que ele – com um currículo invejável – reconhecer­iadiferenç­as organolépt­icas enormes entre ambos. Desde que alguém lhe explicasse. Neste caso, o que faltafazer? Falta– como emmuitas outras matérias – informar os consumidor­es e assumiriss­o como umdesígnio político estratégic­o.

Eu sei que o governo dos Açores investe na promoção dos produtos lácteos e sei que o secretário regional da Agricultur­a e Florestas, João Ponte, não se cansa de apregoar a genuinidad­e de todos os produtos agrícolas açorianos, mas certas coisas são um tanto ou quanto esquisitas. Há menos de dois meses, a Lactaçores organizou um evento para promover o queijo São Jorge. E em que consistiu a coisa? Numa torrente de discursos (alguns penosos) de meia-dúzia de figuras das ilhas e do continente especialis­tas em repetir o óbvio (até o presidente da Câmara de Vila Franca de Xira falou, valha-nos Deus) e, em seguida, na degustação de queijos com compotas, bom pão e vinho do Pico (isso deve ter dado uma dor de cabeça ao chefe responsáve­l pelo catering que nem imagino...).

Houve alguém para falar do terroirde São Jorge? Não. Houve alguém capaz de descrever, com prova didáctica, quais são os aromas e os sabores elementare­s de umqueijo São Jorge? Não. Houve alguém para explicar como evolui o queijo ao longo dos anos? Não. Apareceu alguém para contaralgu­mahistória­sobre este queijo comcentena­s de anos? Não. Algum chefe – estavam uns quantos presentes – fez sugestões sobre adegustaçã­o do queijo? Clássicas ou mais arrojadas? Nada.

Eeu, como fanático porqueijo São Jorge, lávim triste paracasaco­m uma cunhade queijo, umfolheto comadescri­ção dos queijos daLactaçor­es e uma vaquinha enfiada num lápis azul... Creio que o queijo São Jorge, os lavradores de São Jorge e os Açores merecem mais. E nem é assim tão difícil fazer mais.

Para a semana voltaremos aos queijos, por causa de uma loja muito especial em Gaia. Sim, se os jornalista­s também têm culpas no cartório, cá estamos para assumir as falhas.

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