2018, o ano da questiúncula
Em Março deste ano, o Observador noticia que Feliciano Barreiras Duarte, deputado do PSD e na altura secretário-geral do partido, deu durante dez anos a morada da casa dos pais no Bombarral, quando vivia no centro da capital. O deputado refugia-se na legalidade do procedimento, enquanto o jornal lembra um parecer do conselho consultivo da Procuradoria- Geral da República, de 1989, que define como “residência habitual” não a morada administrativa, mas aquela onde a pessoa efectivamente vive
Um mês depois, o Expresso revela como vários deputados dos Açores e da Madeira (PS, PSD e BE, incluindo o presidente do PS, Carlos César) pedem à Assembleia da República o reembolso de viagens já cobertas pelo subsídio de deslocação a que têm direito. Vale a pena notar que este subsídio de 500 euros é devido mesmo que não haja viagens, sendo pago sem apresentação de comprovativos. Os deputados respondem, no essencial, dizendo que a prática é legal.
Um mês depois, a RTP mostra como, afinal, não é só Barreiras Duarte que dá a morada mais distante aos serviços do Parlamento. Vários deputados (PS, PSD, BE) com casa própria em Lisboa, onde moram na maior parte do tempo, cobram despesas de deslocação e ajudas de custo como se vivessem fora de Lisboa, engordando entre 1.200 e 1.600 euros o seu rendimento mensal. Todos se refugiam na legalidade do procedimento (que, como já vimos, não é legal).
Chegamos a Novembro e o Expresso noticia que o deputado José Silvano assina a folha de presenças da Assembleia da República, mas não vai aos trabalhos – e que, em dois dias, há registo de assinatura sem que ele tenha estado fisicamente no Parlamento. Silvano é o secretário-geral que Rui Rio escolheu para suceder a Barreiras Duarte, o deputado da morada no Bombarral, que se demitiu em Março após se ter descoberto que mentira no currículo.
Num comunicado do PSD, Silvano previsivelmente aponta a legalidade de tudo e justifica o “pouco tempo passado no Parlamento” com “uma prática parlamentar” que permite a um deputado trabalhar como dirigente partidário fora do Parlamento – nunca refere que esse trabalho partidário está a ser pago pelo erário público. Só depois de publicada a peça do Expresso é que Silvano pede aos serviços do Parlamento que lhe marquem duas faltas, perdendo direito a 138 euros em ajudas de custo. Dias depois volta a assinar a folha de presenças da Comissão de Transparência – nem inventado, eu sei – para sair sem assistir aos trabalhos.
Se olharmos só para a gravidade dos actos – para o desfalque do erário público que implicam – e se compararmos com o que conhecemos sobre a corrupção e a má ges- tão no país, podemos concordar com a classificação de “questiúncula” dada por Rui Rio a propósito do caso Silvano. Mas se quisermos ser honestos percebemos facilmente que chamar a estas coisas “questiúnculas” – e tratá-las com ar de impunidade ou de gozo, como fazem Rio, Carlos César ou António Costa – é não compreender o tremendo peso simbólico que têm junto da população.
Há por cá muita satisfação com o facto de sermos “um exemplo”, a excepção à subida dos populismos autoritários. e anti-sistema. Esta satisfação, a par da anestesia política em que Portugal vive, leva à complacência. As questiúnculas são uma das partes mais visíveis da degradação institucional no país: os conflitos de interesse, o peso das ligações familiares na política, o amiguismo evidente, a fragilização da independência de reguladores. Tudo lenha seca aproveitável por um incendiário talentoso – e com um bom sentido de timing.
“Questiúncula” é de quem não compreende o tremendo peso simbólico destes casos para a população.