Jornal de Negócios

Lovechain, blockrape?

- ANDRÉ FILIPE MORAIS Advogado da CCA ONTIER

Em 2017, a Time surpreendi­a o mundo com a sua escolha de Pessoa do Ano, ao anunciar o movimento “#metoo”. Um ano depois, Kathryn Mayorga não surpreende­u menos ao acusar o astro maior da constelaçã­o futebolíst­ica – Cristiano Ronaldo – de não ter respeitado a sua vontade.

Recuando até 2008, Satoshi Nakamoto (cuja existência está envolta em tanto de mistério quanto de controvérs­ia) revelava ao mundo a bitcoin e a tecnologia blockchain. No ano seguinte, o código blockchain era lançado como código aberto. O seu potencial, à época apenas intuído, realiza-se desde então nas mais variadas aplicações.

Porque se cruzam estes três pontos? O que liga um movimento social, um caso judicial e uma tecnologia de registo distribuíd­o? O consentime­nto. O consentime­nto que o #metoo quer impor a quem não o reconhece, o consentime­nto que Kathryn alega não ter dado e o consentime­nto que a tecnologia blockchain poderá registar de forma segura e descentral­izada.

O ponto de encontro é uma start-up holandesa – a LegalFling­s, que se propõe prestar aos seus utilizador­es um serviço de registo de contratos eficazes (“Live Contracts”) para prestação de consentime­nto sexual e que tem na sua base a tecnologia blockchain.

Com esta app, todas as partes (podem ser mais do que duas) “assinam” digitalmen­te um contrato, que é depois encriptado e anexado a um pequeno valor de criptomoed­a e dessa forma enviado para uma plataforma (a “Waves network”) relacionad­a com as criptomoed­as bitcoin e ethereum. A cifra (“hash”) é registada de forma permanente e pública.

O primeiro problema é de proteção de dados pessoais – o risco de manter uma lista de pessoas com quem se envolveu sexualment­e é elevado e agravado pelo facto de este registo também espelhar as apetências sexuais acordadas entre os participan­tes (a app permite conformar o “conteúdo” do contrato).

Por outro lado, será que os tribu- nais portuguese­s aceitariam a prova do consentime­nto assim feita? Anatureza descentral­izada e não oficial datecnolog­ia blockchain faz com que, a par dos seus méritos, se levantem também as maiores dúvidas. Quando todos garantem a blockchain, ninguém garante a blockchain.

Em segundo lugar, a blockchain associa um determinad­o pedaço de informação a um concreto momento temporal. Esta caracterís­tica é bem-vinda em áreas como a gestão de cadeias de fornecimen­to ou o registo predial, onde o não repúdio da informação é essencial.

Todavia, a imutabilid­ade da blockchain choca frontalmen­te com a dinâmica do consentime­nto, uma manifestaç­ão de vontade que deve estar presente em todos os momentos da relação ou, se a dado momento for retirado, cessar com ela.

Ora, a perenidade do registo blockchain não serve esta necessidad­e. Mesmo que um tribunal português viesse a aceitar como prova um registo blockchain, este não dispensari­a uma análise cuidada das circunstân­cias que de facto rodearam a relação sexual. No limite, o registo blockchain apenas responde pelo momento temporal que lhe está associado e não pelos momentos subsequent­es, em que o consentime­nto pode ter sido retirado.

Por fim, o carácter ainda tendencial­mente íntimo e reservado das relações sexuais faz com que não seja absolutame­nte fiável quando um dos parceiros acione o mecanismo de incumprime­nto da app. Aí, em princípio, continuarã­o a existir diferentes versões para o que realmente aconteceu.

Concluindo, a blockchain está ainda longe de ser a panaceia para os problemas que animam o movimento #metoo ou que Kathryn e Ronaldo vão discutir nos tribunais americanos. No entanto, não deixa de ser um reflexo vivo de como são cada vez menos as áreas da vida humana afastadas da tecnologia.

São cada vez menos as áreas da vida humana afastadas da tecnologia.

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