Jornal de Negócios

“É preciso decidir que ganhos em saúde devem ser pagos por todos”

A rigorosa avaliação económica em saúde é crucial para perceber a relevância das inovações, dispositiv­os médicos ou formas de prestação de cuidados. Céu Mateus considera que “a prática de uma medicina baseada na evidência ainda tem um longo caminho a perc

- FILIPE S. FERNANDES

Céu Mateus é professora associada da Universida­de de L ancas ter. Licencio u-se em Economia no IS EGe doutorou-se em Economia da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universida­de Nova de Lisboa, onde leccionou entre 2001 e 2014. A sua investigaç­ão tem como principais temas a avaliação económicad­as tecnologia­s de saúde, medição de eficiência, equidade e qualidade de vida.

Para uma organizaçã­o de saúde quais são os principais desafios na implementa­ção dos modelos baseados nos resultados/ganhos em saúde, em métricas mais qualitativ­as?

O principal desafio estará relacionad­o com a subjectivi­dade da avaliação e com a existência de diferentes instrument­os para diferentes doenças com diferentes escalas. A medição da qualidade de vida relacionad­a com a saúde, ou a medição de ganhos em saúde, é feita com base em instrument­os devidament­e validados que apresentam resultados quantifica­dos e que existem há dezenas de anos sem terem suscitado interesse de maior por parte dos profission­ais ou das organizaçõ­es de saúde. Deve ser tida em consideraç­ão a gestão dos dados recolhidos e qual o seu propósito.

Esta mudança é estimulada pela tecnologia ou implica uma nova forma de organiza- ção em que os cidadãos/doentes participam nas tomadas de decisão?

Uma consulta hoje continua a ser muito parecida com uma consulta há 500 anos: temos um médico e temos um doente. As pessoas levam mais tempo a mudar do que a tecnologia. A tecnologia muda-nos o mundo todos os dias. Basta pensar no que nos fez a internet nos últimos 20 anos. É natural que os processos organizaci­onais procurem retirar benefício das tecnologia­s e equipament­os que vão estando ao nosso dispor.

Os cidadãos e os doentes vão estando mais envolvidos na tomada de decisão, mas tem de ser produzida informação que possam compreende­r e utilizar. Tem de se eliminar a assimetria de informação que existe entre os profission­ais de saúde e os cidadãos/doentes, caso contrário não pode haver um verdadeiro envolvimen­to por parte destes últimos em processos que são do seu interesse e que dizem respeito à sua vida e à sua morte.

Como é que as organizaçõ­es se podem estruturar para fazer face à inovação, cada vez mais onerosa, e selecciona­r as que contribuem para uma maior qualidade de vida dos doentes?

É importante não esquecer que para os ganhos em saúde também contribuem as condições de habitação, a alimentaçã­o, o rendimento, etc. Aprevenção e o rastreio são muito importante­s para ganhos significat­ivos em saúde, mas tendem a ser relegados para segundo plano em termos de recursos atribuídos. Os sistemas e as organizaçõ­es de saúde não existem fora das sociedades onde estão, diferentes países utilizamdi­ferentes mecanismos paradecidi­r sobre as inovações a adoptar.

É fundamenta­l decidir quais são os ganhos em saúde que consideram­os efectivame­nte importante­s e, por isso, devem ser pagos por todos. A avaliação económica em saúde feita de forma rigorosa é crucial para que se consiga perceber quais as inovações que são relevantes, bem como os dispositiv­os médicos ou formas de prestação de cuidados. Mas também temos de estar preparados para aceitar que nem toda a inovação é geradora de ganhos em saúde, por isso, não deve ser adoptada. Além do mais, nem sempre a inovação em saúde estará alinhada com os interesses dos doentes, há áreas em que não aparecem inovações há muitos anos, por exemplo.

Por outro lado, também poderemos questionar se é aceitável que os preços dos novos medicament­os e dispositiv­os médicos tenham de ser sempre superiores aos preços dos produtos que vêm substituir. Se acharmos que sim, então temos de aceitar que o aumento da despesa em saúde tem de ser feito à custa de cortes no orçamento em outros sectores ou à custa do aumento de impostos, isto num sistema como o português. Poderemos ainda optar por um modelo mais americaniz­ado em que o acesso aos cuidados de saúde e à inovação fica dependente da capacidade individual de pagar por esse acesso.

Qual pode ser o papel da tecnologia, como a gestão de dados, para um novo modelo de saúde baseado em resultados e ganhos para a saúde?

Um novo modelo de saúde vai

“É fundamenta­l decidir quais os ganhos em saúde que consideram­os efectivame­nte importante­s.”

depender do que as pessoas que trabalham no sector da saúde efectivame­nte quiserem fazer com a tecnologia e os dados que têm ao seu dispor. Não nos podemos esquecer de que toda a gestão de dados comporta custos. A tecnologia, tal como até agora, é uma ferramenta de apoio à decisão e ao controlo de qualidade dos processos.

A avaliação económica em saúde já produz muita informação sobre optimizaçã­o de recursos em saúde, ou seja, permite-nos saber os ganhos que são trazidos por tratamento­s inovadores e com que custos, por exemplo. Ou tratamento­s que não trazem ganhos em saúde e que deviam deixar de ser feitos.

Contudo, a prática de uma medicina baseada na evidência ainda tem um longo caminho a percorrer. E também não nos devemos esquecer de que menos pode ser mais como o programa Choosing Wisely Portugal – Escolhas Criteriosa­s em Saúde mostra ao tentar modificar o comportame­nto dos prestadore­s e dos doentes.

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