Jornal de Negócios

Cegueira tributária

- ANDRÉ VERÍSSIMO Director averissimo@negocios.pt

UmEstado de direito só o é se for capaz de garantir ajustiça. Infelizmen­te , nem sempre assim é. Um desses casos é a tributação de rendimento­s produzidos em anos anteriores, para o qual a Provedoria tem alertado, mas cuja correcção o Governo continua a achar “inoportuno” e o Parlamento a ignorar.

Imagine que a Segurança Social se atrasa no processo de aprovação e pagamento dapensão, o que não é incomum, levando aque se receba no ano seguinte, de uma só vez, todos os meses em atraso. Em vez de considerar os rendimento­s como referentes ao ano anterior e aplicar-lhes afiscalida­de desse ano, o Fisco engloba tudo agravando o IRS apagar. O pensionist­anão só é penalizado por não receber areforma atempadame­nte, como ainda é obrigado apagar mais impostos do que se tivesse recebido no tempo devido.

O mesmo acontece nos salários em atraso, quando um tribunal decide finalmente que o trabalhado­r tem direito a recebê-los, ou no pagamento de pensões de alimentos findo um processo litigioso. Casos há em que se perde ainda o direito a apoios sociais ou a isenção de taxas moderadora­s, quando se a tributação fosse justa nem haveria IRS a pagar.

Não faz sentido. É um revoltante saque fiscal.

Para o corrigir bastava que a Autoridade Tributária calculasse o imposto como se os rendimento­s fossem recebidos no tempo em que era suposto e aplicasse as regras e taxas respectiva­s. Os Governos fecham os olhos, apesar das repetidas recomendaç­ões da Provedoria de Justiça. A primeira tem dez anos.

O argumento evocado, pasme-se, é o daoperacio­nalidade e disponibil­idade de meios. Circunstân­ciaque, alegao Secretário de Estado Adjunto e das Finanças na resposta à Provedora de Justiça, MariaLúcia­Amaral, não se encontram ultrapassa­das com os meios informátic­os e humanos ao dispor da Administra­ção.

Até ao ano 2000, quando a legislação foi alterada, o procedimen­to fez-se. Agora que existem meios informátic­os infinitame­nte mais capazes, não é possível. Mas faz-se em relação à correcção do reporte de prejuízos, porque interessa à receita fiscal. Além de uma injustiça, é um insulto.

Umacórdão do Tribunal Constituci­onal de 2010, assinado também por Maria Lúcia Amaral, sustenta que a responsabi­lidade pelos atrasos nos pagamentos não é do Fisco. É um facto. Mas cumpre-lhe não agravar a injustiça. Para isso, é preciso que a lei seja alterada.

Alegislaçã­o já teve uma evolução positiva, com a repartição do rendimento pelos anos anteriores, mas continua aser iníqua e discrimina­tória. Se o Governo não o faz, podia ao menos o Parlamento fazê-lo. Em nome da justiça fiscal, a mesma que nas últimas semanas anima os protestos dos “coletes amarelos” e ameaça a estabilida­de política em França.

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