Cegueira tributária
UmEstado de direito só o é se for capaz de garantir ajustiça. Infelizmente , nem sempre assim é. Um desses casos é a tributação de rendimentos produzidos em anos anteriores, para o qual a Provedoria tem alertado, mas cuja correcção o Governo continua a achar “inoportuno” e o Parlamento a ignorar.
Imagine que a Segurança Social se atrasa no processo de aprovação e pagamento dapensão, o que não é incomum, levando aque se receba no ano seguinte, de uma só vez, todos os meses em atraso. Em vez de considerar os rendimentos como referentes ao ano anterior e aplicar-lhes afiscalidade desse ano, o Fisco engloba tudo agravando o IRS apagar. O pensionistanão só é penalizado por não receber areforma atempadamente, como ainda é obrigado apagar mais impostos do que se tivesse recebido no tempo devido.
O mesmo acontece nos salários em atraso, quando um tribunal decide finalmente que o trabalhador tem direito a recebê-los, ou no pagamento de pensões de alimentos findo um processo litigioso. Casos há em que se perde ainda o direito a apoios sociais ou a isenção de taxas moderadoras, quando se a tributação fosse justa nem haveria IRS a pagar.
Não faz sentido. É um revoltante saque fiscal.
Para o corrigir bastava que a Autoridade Tributária calculasse o imposto como se os rendimentos fossem recebidos no tempo em que era suposto e aplicasse as regras e taxas respectivas. Os Governos fecham os olhos, apesar das repetidas recomendações da Provedoria de Justiça. A primeira tem dez anos.
O argumento evocado, pasme-se, é o daoperacionalidade e disponibilidade de meios. Circunstânciaque, alegao Secretário de Estado Adjunto e das Finanças na resposta à Provedora de Justiça, MariaLúciaAmaral, não se encontram ultrapassadas com os meios informáticos e humanos ao dispor da Administração.
Até ao ano 2000, quando a legislação foi alterada, o procedimento fez-se. Agora que existem meios informáticos infinitamente mais capazes, não é possível. Mas faz-se em relação à correcção do reporte de prejuízos, porque interessa à receita fiscal. Além de uma injustiça, é um insulto.
Umacórdão do Tribunal Constitucional de 2010, assinado também por Maria Lúcia Amaral, sustenta que a responsabilidade pelos atrasos nos pagamentos não é do Fisco. É um facto. Mas cumpre-lhe não agravar a injustiça. Para isso, é preciso que a lei seja alterada.
Alegislação já teve uma evolução positiva, com a repartição do rendimento pelos anos anteriores, mas continua aser iníqua e discriminatória. Se o Governo não o faz, podia ao menos o Parlamento fazê-lo. Em nome da justiça fiscal, a mesma que nas últimas semanas anima os protestos dos “coletes amarelos” e ameaça a estabilidade política em França.