BRUNO FARIA LOPES
“Ponto comum a muitos desastres na Caixa: interferência política.”
Imaginemos esta história: o supervisor da banca convida os accionistas do maior banco privado do país para uma reunião. Esses accionistas são um grupo disperso e curioso. Dois deles são bancos rivais do banco de que são accionistas; outro é a empresa semi-pública de eletricidade; outros são accionistas recentes fabricados inteiramente com crédito de bancos rivais, um deles accionista do banco em causa, com o conhecimento do supervisor. Na reunião, o supervisor pastoreia o grupo no sentido de encontrar uma solução diferente para a equipa de administradores que iria a votos daí a semanas. Da conversa surge um nome: o líder de um banco rival, acionista do banco em causa, que por sua vez financiara alguns dos acionistas ali presentes.
Esta história aconteceu a 21 de dezembro de 2007, na sede do Banco de Portugal. O banco em causa foi o BCP. Está a ser revisitada hoje porque um dos acionistas fabricados a crédito foi Joe Berardo e porque o crédito que ficou largamente por pagar era da Caixa, cuja gestão está a ser alvo de uma comissão de in
quérito. E está a ser revisitada porque o supervisor, Vítor Constâncio, disse aos deputados que não conhecia a forma como Berardo tinha financiado a sua posição no BCP, o que por lei não era sequer possível, como noticiou o Público. Constâncio tinha de saber – e soube. Enfrenta agora vergonha pública e mais uma ida desagradável ao Parlamento.
Mas o lado revelador desta história não está propriamente no elo Berardo – Constâncio, embora este não seja despiciendo. O que interessa mais é a cultura empresarial e política, antiga, que todo o episódio revela: a interferência deslocada do supervisor, a opacidade da reunião no remanso dos bastidores, o cruzamento pernicioso de participações entre bancos (nascido da decisão política nos anos de 90 de não deixar ir todo o grupo Champalimaud para os espanhóis do Santander), o cruzamento de participações entre empresas de topo (para blindá-las de ofensivas externas), a fabricação de accionistas que não tinham capital, a presença excessiva do poder do Estado (logo, da política) num banco privado.
Esta cultura, vendida muitas vezes sob o slogan de um suposto “interesse nacional”, vigorou no Estado Novo. Perdurou pela democracia – teve o seu pico nos anos imediatamente antes da crise – e cruzou-se inevitavelmente com o sistema arterial da economia: a banca. O banco público foi disso um exemplo, como mostram as operações dissecadas nos últimos dias na comissão de inquérito: a expansão desastrosa da Caixa em Espanha, o negócio da La Seda, o financiamento de acionistas nas batalhas do BCP, da PT e da Cimpor.
A Caixa foi sendo envolvida em prioridades políticas que uma gestão puramente profissional, e competente, não assumiria. Foram prioridades que torraram muito dinheiro – e que permitiram, a espaços, a captura de recursos públicos por interesses estritamente privados. Isto é diferente do papel importante que cabe ao Estado, seja a regular, seja a pensar a política económica.
A crise expôs a fragilidade da maior parte dos protagonistas desta cultura do “interesse nacional”, acabando por esmagá-los. Hoje muita coisa está em mãos estrangeiras, com os chineses e os fundos de ‘private equity’ a liderarem a carga, perante a passividade geral. Mas terá esta forma de pensar sobre a economia, num país pequeno e sem capital, desaparecido com a crise? Quando um Presidente da República entra no mandato a mandar recados contra a “invasão espanhola” na banca ou quando um primeiro-ministro se encontra nos bastidores com uma accionista envolvida num conflito num banco privado devemos permanecer cépticos. As lições da Caixa podem ter ficado por aprender.
Ponto comum a muitos desastres na Caixa: interferência política.