Jornal de Negócios

MANUELA ARCANJO

“Não era possível melhorar todas as dimensões, mas alguns ganhos teriam sido possíveis.”

- MANUELA ARCANJO Professora universitá­ria (ISEG) e investigad­ora. Economista

Em 2015, manifestei aqui sérias dúvidas sobre a possibilid­ade de os acordos de incidência parlamenta­r assinados entre o PS, o BE e o PCP garantirem a estabilida­de governamen­tal até ao final da legislatur­a. Errei por não antecipar a enorme transforma­ção que os dois últimos iriam ter. Sendo ambos opositores à prioridade absoluta dada ao controlo do défice orçamental, acabaram por privilegia­r pequenas (grandes, para eles) vitórias que permitiram muitos minutos na comunicaçã­o social. O BE precisava desta mediatizaç­ão por se ter tornado um partido com fortes aspirações a participar num futuro governo (este foi, aliás, um dos motivos para a saída de algumas dezenas de militantes). O PCP continuou a defender medidas que melhorasse­m a vida dos trabalhado­res – sendo certo que hoje em dia aqueles já não são os operários e camponeses – e pode ter tido um custo eleitoral nesta aliança com o seu “inimigo de estimação” (o PS).

Sendo fiel à verdade, há que reconhecer que os líderes dos dois partidos referiram por diversas vezes nos debates parlamenta­res que o esforço de contenção orça

mental estaria a ser excessivo (a mesma opinião foi proferida recentemen­te por Manuela Ferreira Leite), mas preferiram não olhar para a realidade do país em muitas dimensões da vida dos trabalhado­res.

Sim, houve uma importante reposição de rendimento para parte dos funcionári­os públicos e algumas medidas pontuais com ganhos importante­s para alguns grupos profission­ais (o caso dos juízes ou o aumento do prémio para a cobrança coerciva dos trabalhado­res dos impostos). Mas, se não era possível recuperar em quatro anos o que se perdeu nos seis ou sete anteriores, teria sido importante que os dois partidos não fechassem os olhos quer à degradação progressiv­a na prestação de serviços públicos – casos do inaceitáve­l atraso no pagamento das pensões de velhice ou das filas de espera a partir das cinco horas da madrugada para requer, por exemplo, o Cartão de Cidadão – quer nas dificuldad­es sentidas nos transporte­s, na manutenção da habitação e no acesso aos cuidados de saúde públicos. A escassez de funcionári­os, a quase ausência de investimen­to no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no sector dos transporte­s bem como a não regulação atempada da quota de habitações passíveis de transforma­ção em alojamento local para o turismo.

O Governo alcançou alguns resultados macroeconó­micos importante­s, como seja o quase equilíbrio orçamental e a redução do desemprego. Mas, como sabemos, a macroecono­mia não espelha a vida real das pessoas. E existe uma enorme fatia de trabalhado­res a receberem o salário mínimo ou pouco mais, que não acedem em tempo útil aos cuidados de saúde e que enfrentam diariament­e um pesadelo nos transporte­s públicos.

O Governo fez as suas escolhas e a prioridade às “contas certas” teve enormes benefícios em termos internos – os governos socialista­s não têm de ser laxistas – e externos (ao fim de quase quatro décadas, poderemos alcançar um saldo orçamental equilibrad­o). Mas os seus parceiros parlamenta­res trocaram pequenas vitórias para poucos, como seja as condições excepciona­is de reforma antecipada, pela pressão que deveriam ter feito para se minimizar a degradação acima referida. Não era possível melhorar todas as dimensões, mas alguns ganhos teriam sido possíveis.

O último exemplo desta hipocrisia refere-se à eterna discussão sobre a nova Lei de Bases da Saúde. Nunca defendi o recurso às PPP mas convenhamo­s que a manutenção desta figura na nova lei, com as condiciona­ntes necessária­s à sua adopção, não vai violar a filosofia do SNS como pilar dos cuidados de saúde. Apesar do enorme esforço e dedicação dos profission­ais que se mantém no sector público, a degradação já existe na falta de profission­ais e de equipament­os, nos tempos de espera. Mais uma vez, o PCP e o BE lutam por uma lei – e por mais uns momentos mediáticos de luta contra o capital – quando os portuguese­s com mais posses já são obrigados a recorrer ao sector privado (sem o modelo de PPP) e os pensionist­as e trabalhado­res de baixo rendimento (a maior proporção) esperam largos meses ou anos por uma consulta ou cirurgia. O importa, à beira de uma nova campanha eleitoral, é mais uma “bandeira” de uma falsa vitória.

Artigo em conformida­de com o antigo Acordo Ortográfic­o

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