Uma vida a ver passar comboios. Até um dia.
Uma pequena obra-prima do austríaco Joseph Roth, uma história improvável de amor, remorsos e maus sentimentos
Neste curto e pungente livro de Joseph Roth, ficamos a saber na primeira página que o protagonista, Adam Fallmerayer, “perdeu a sua vida de forma assombrosa”, ainda que a mesma “nunca teria sido brilhante e nem sequer duramente satisfatória”.
Adam Fallmerayer tinha um emprego rotineiro ligado aos comboios – como o seu pai já tivera. Era, desde 1908, chefe de uma estação identificada aqui como L., a duas horas de Viena. “Casou-se com uma filha discreta, um pouco limitada e não muito nova de um alto funcionário de Brunn. ”
Teve duas filhas gémeas, que não terão muita importância na sua vida, nem neste livro. Talvez se explique pelo facto de Fallmerayer esperar rapazes e lhe terem saído raparigas. A mulher também passará por estas páginas, e pela sua vida, sem grande marca distintiva, como uma pessoa que ali está.
Talvez fosse uma maldição, como maldição era esta vida pacata, anónima e aborrecida de um homem que literalmente ganhava a vida a ver passar comboios cheios de pessoas – gente rica e nobre – que iam passar férias para as estâncias balneares de Itália. Simbolicamente, “os comboio-expresso que iam em direção ao Sul, para Merano, para Trieste, para Itália, nunca paravam na sua minúscula estação.”
O acontecimento que lhe mudaria a vida sucedeu numa noite chuvosa de março de 1914, quando um desses comboios-expresso chocou contra um de mercadorias, de que resultaram vários mortos e feridos. Um desses feridos é uma mulher que parecia “descansar numa ilha de sossego” por entre o mar de escombros do acidente. A mulher estava viva, precisava apenas de alguns dias de descanso, mas como estava longe de casa e a estação ficava num sítio remoto, foi sugerido pelo médico que ficasse na casa do chefe de estação, recomendação que foi aceite. A senhora ficou então uma semana no quarto de Fallmerayer, enquanto este simpaticamente se deslocou, e à família, para outras divisões da casa.
Devido àqueles arrebates do coração que não se explicam, naturalmente que Fallmerayer se apaixonou por esta mulher assim que a viu. Era uma condessa chamada Walewska, “uma russa dos arredores de Kiev”. Todos os cheiros – o perfume do corpo, o couro da bagagem – jamais saíram da cabeça de Fallmerayer, mesmo muito tempo depois da condessa se restabelecer e ir embora.
Depois chegou a primeira grande guerra e a mobilização geral. Walewska, a russa, vinha agora do país inimigo, mas isso não parecia interessar muito – e isso trazia-lhe remorsos. Philip Roth despacha a guerra rapidamente. “Foi incorporado. Foi para a guerra. Lutou. Foi um soldado valente. Escreveu as habituais cartas afetuosas de correio militar para casa. Foi agraciado e promovido a tenente. Foi ferido. Foi internado num hospital militar. Tinha direito à licença. Prescindiu da licença e foi de novo para a guerra. Lutou no Leste. Nas horas livres, no meio do tiroteio, da inspeção, dos assaltos, começou, com os livros que encontrou por acaso, a aprender russo. Quase por volúpia.”
Aprendendo russo, Fallmerayer estava na verdade a falar com ela. Com o avançar da guerra, chegou a Kiev, chegou à cidade dela. E foi à sua procura e achou-a. E o marido dela estava longe, em combate. Um cenário perfeito, e fora a guerra a culpada, e por isso, “todas as manhãs e todas as noites, abençoava a guerra e a ocupação. Nada temia mais do que uma paz repentina. […] Jamais paz na Terra”.