E se trabalhássemos só quatro dias por semana?
Um empresário neozelandês lançou um movimento internacional em defesa da redução do tempo de trabalho para quatro dias por semana depois de ter experimentado o modelo com sucesso na sua companhia. O assunto está a chegar à agenda política de muitos países. Mas há quem defenda que Portugal não está preparado para a mudança.
Aideia surgiu numa viagem. Andrew Barnes, fundador da financeira neozelandesa Perpetual Guardian, estava no avião quando leu um artigo de um economista no qual se referia que muitos trabalhadores só são produtivos duas horas e meia por dia. O número surpreendeu-o e começou a refletir sobre as imensas distrações que todos sofremos ao longo do dia de trabalho. Pausas para café, dois dedos de conversa, telefonemas da família, responder a e-mails, passagens pelas redes sociais, um colega que pede ajuda… a lista era infindável. Nessa altura, teve uma ideia. “E se eu desse ao meu pessoal um dia de folga por semana em troca da mesma produtividade em quatro dias?”
Andrew Barnes partilhou esta história em 2018 numa apresentação de quase 13 minutos no TEDxAuckland. No seu discurso, contou que os restantes membros da administração não gostaram desta “grande ideia” e rejeitaram-na com uma série de argumentos que a lançavam por terra. Barnes acreditava que podia funcionar e propôs que se envolvessem os 240 trabalhadores na mudança. Seriam questionados se trabalhariam de uma forma diferente se tivessem um dia de folga por semana sem corte na remuneração, em troca de “ótimos níveis de produtividade” e da “manutenção dos padrões de serviço” e não tendo de trabalhar mais nos outros quatro dias. Lançado o desafio, decidiram fazer a experiência durante dois meses, março e abril de 2018, com a promessa de que, se resultasse, a medida tornar-se-ia definitiva. A empresa contratou dois investigadores da Universidade de Auckland para avaliarem os resultados.
Passados os dois meses, a análise mostrou que a produtividade tinha aumentado 20%. “Mas foram outros os factos que mais nos surpreenderam”, referiu o empresário. Os académicos concluíram que houve uma redução nos níveis de stress, uma subida da satisfação e da concentração e uma melhoria do equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. “As pessoas estavam a mudar comportamentos” e a “reconhecer que aquele dia era um presente que tinha de ser merecido, não era algo garantido.”
Helen Delaney, professora da Escola de Negócios da Universidade de Auckland, foi uma das investigadoras que avaliou esta experiência. Defende que a motivação e o empenho dos trabalhadores aumentaram porque foram ouvidos e envolvidos. Tiveram um papel fundamental no desenho do modelo, de forma a evitar impactos negativos na produtividade. “Criaram um conjunto de inovações e iniciativas para trabalharem de forma mais produtiva e eficiente, desde automatizar procedimentos manuais até à redução ou eliminação do uso não profissional da internet”, disse ao The Guardian. O outro investigador, Jarrod Haar, professor de Gestão de Recursos Humanos da Universidade de Tecnologia de Auckland, referiu ao The New York Times que as chefias notaram que as equipas ficaram mais criativas, melhoraram a pontualidade e passaram a fazer menos intervalos longos durante o expediente. Mas também houve outros benefícios. A conta da luz baixou 20%.
A experiência desta empresa tornou-se notícia em várias partes do mundo. Hoje, Andrew Barnes é um ativista e filantropo na defesa deste modelo de organização do trabalho a nível global. “A maneira como trabalhamos hoje já não funciona. É mais adaptada ao século XIX do que ao século XXI”, afirmou no seu discurso no TEDxAuckland. O empresário garante que este novo modelo dá as mesmas oportunidades a homens e mulheres no mercado de trabalho e tem efeitos positivos no ambiente, na organização familiar e na saúde das pessoas. “O que aconteceria ao mundo se tirássemos 20% dos carros da estrada? Que impacto isso teria no ambiente, nas infraestruturas, nos níveis de stress?”, pergunta. Além disso, diz, nessa folga podemos in
vestir na formação, capacitarmo-nos para lidar com os novos desafios, como a inteligência artificial.
O neozelandês lançou o movimento global “4 day week”, uma comunidade em que todos os interessados nesta nova forma de trabalhar podem ligar-se e partilhar ideias. O movimento, que surgiu depois de toda a atenção mediática que a experiência na Perpetual Guardian gerou em 2018, conseguiu inspirar outras empresas e pôs o tema na agenda política. Na conferência anual do Partido Trabalhista, que decorreu em Brighton, em Setembro, o ministro-sombra das Finanças do Reino Unido, John McDonnell, afirmou que se o partido liderado por Jeremy Corbyn chegar ao poder, vai avançar na próxima década com a semana de trabalho no Reino Unido de 32 horas semanais, o equivalente aos quatro dias, sem corte de salários. A implementação deste plano vai depender do sucesso dos processos de automação nas companhias e do aumento da produtividade, explicou o político.
Também a Irlanda está a estudar uma forma de adotar esta organização do trabalho. O braço irlandês do movimento criado por Andrew Barnes – o Four Day Week Ireland (4DWI) –, no qual estão representados sindicatos, académicos, ONG e empresas, pretende encorajar o governo e as empresas privadas a reduzirem o tempo de trabalho dos seus funcionários. Um dos membros deste movimento é o Fórsa, um sindicato da Função Pública com 80 mil associados, que lançou uma campanha de sensibilização para esta questão. “É importante que os benefícios da automação sejam partilhados com os trabalhadores”, disse o diretor da campanha, Joe O’Connor, ao The Journal. O movimento não defende uma fórmula única. “Não estamos a dizer que toda a gente vai trabalhar quatro dias por semana […], o que estamos a dizer é que este deve ser o novo padrão de trabalho, a nova referência na economia e claro que terá de haver flexibilidade tanto dos trabalhadores como dos empregadores.”
INVESTIGADORES ESTUDAM CONSEQUÊNCIAS
A academia também já está a investigar o impacto desta medida. Um estudo da Henley Business School, da Universidade de Reading, em Inglaterra, publicado em julho passado, analisou 250 empresas do Reino Unido que adotaram a semana dos quatro dias de trabalho. Os resultados foram bastante positivos. De acordo com os investigadores, cerca de dois terços melhoraram a produtividade. E a capacidade de atração e retenção de talentos também aumentou. No conjunto, estas empresas poupam agora 92 mil milhões de libras (o equivalente a mais de 102 mil milhões de euros) por ano, porque 40% dos trabalhadores usaram o tempo livre para se qualificarem. O estudo conclui que uma semana de trabalho mais curta favoreceu os trabalhadores e também as próprias empresas.
Há um interesse crescente em todo o mundo por fazer uma reflexão sobre a forma como estamos a trabalhar. “Porque devemos exigir uma semana de trabalho mais curta hoje? ”, perguntava há um mês Will Stronge, codiretor do “think tank” Autonomy, que reflete sobre questões do mundo do trabalho, num artigo de opinião publicado no The Guardian. Um dos argumentos que o investigador em Política e Filosofia da Universidade de Brighton apresentava era a saúde e o bem-estar das pessoas. Em 2017/2018, afirmava, 57% das ausências ao trabalho por motivos de saúde no Reino Unido estavam relacionadas com stress, ansiedade e depressão. E, dessas, 44% tinham como causa, única e exclusivamente, a pressão da carga de trabalho. “Com mais tempo para recuperar, os trabalhadores terão uma melhor performance, vão apreciar mais o seu trabalho e, inevitavelmente, vão estar menos tempo de baixa médica”, concluía.
Seria possível aplicar este modelo em Portugal? “Se a redução do tempo de trabalho estiver associada a uma diminuição do rendimento, num país com salários baixos como o nosso, isso pode ser muito difícil de concretizar”, responde Paulo Marques, professor do Departamento de Economia Política do ISCTE. E depois, acrescenta, é óbvio que pode haver impacto ao nível da produtividade. Mesmo que não haja um corte nos salários, há um outro problema que se levanta, que é o da competitividade em certos setores da economia. Se os países com quem competimos diretamente, como os do Leste da Europa, não adotarem a mesma medida, podemos ficar a perder na atração de investimento, refere o economista.
Luís Gonçalves da Silva, especialista em direito do trabalho, concorda. “Não creio que os empregadores portugueses estejam em condições de suportar esta redução das horas de trabalho sem uma diminuição da retribuição”, afirma. Por isso, apesar de ver virtudes neste tipo de organização do trabalho, não lhe parece que a médio prazo possa ser aplicada de forma transversal.
Em termos legais, qualquer empresa portuguesa que queira implementar este modelo dos quatro dias por semana já pode fazê-lo. A lei laboral portuguesa permite que haja um acordo entre empregado e entidade patronal no sentido de uma redução do horário de trabalho face ao limite legal das 40 horas semanais. “O que o legislador impõe é o número de horas, não o de dias de trabalho. O trabalhador só tem de ter, em regra, um dia de descanso semanal”, explica o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Para Luís Gonçalves da Silva, avançar com esta medida é “começar a casa pelo telhado”. Há problemas estruturais que têm de ser resolvidos primeiro, nomeadamente “a questão da baixa produtividade e da falta de qualificação de empregados e empregadores”. Antes, diz o jurista, “é preciso fazer um estudo dos efeitos por setores, para vermos se é ou não exequível nos próximos anos”.
O economista Paulo Marques refere, no entanto, que pode haver uma solução para a questão setorial. “Ao nível da negociação coletiva entre sindicatos e organizações patronais, pode haver uma discussão sobre onde é possível haver essa alteração.” Mas aplicar a medida de forma transversal no país é “difícil”.
Não são só questões económicas que põem entraves. Há uma “questão cultural” que se instalou e que não ajuda a mudar o estado das coisas, defende o psiquiatra Pedro Afonso. “A primeira medida que é preciso tomar é mudar a mentalidade” no que diz respeito ao “presentismo laboral”. “Existe uma ideia errada de que estar muito tempo no local de trabalho é sinónimo de maior produtividade, vinculação e empenho”. De facto, acrescenta, “um trabalhador que não trabalhe além do que está no contrato habitualmente é olhado de soslaio e é vítima de ostracismo”, afirma o clínico. A imagem que passa para as chefias e para os próprios colegas é que essa pessoa “está desmotivada” ou que “não vestiu a camisola”.
Pedro Afonso refere que há uma correlação entre “o excesso de carga horária e o aumento de perturbações de ansiedade, perturbações depressivas e consumo de psicofármacos, nomeadamente antidepressivos e ansiolíticos”. Por isso, não hesita em afirmar que “a forma como está a ser organizado o trabalho no nosso país está a causar prejuízo grave na saúde” dos portugueses e a “criar um grande conflito entre o trabalho e a vida familiar”. Para o psiquiatra, a grande vantagem em adotar este modelo dos quatro dias de trabalho é “prevenir o burnout”, mas também serviria de “fator motivacional”. É que, diz, “a qualidade de vida também se mede pelo tempo de que a pessoa dispõe”.
A última vez que houve uma reforma profunda nas horas de trabalho foi há precisamente 100 anos. Na primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), organismo criado no pós-Primeira Guerra Mundial, o tema “tempo” dominou o encontro, afirma Manuel Carvalho da Silva, sociólogo e secretário-geral da CGTP entre 1986 e 2012. Foi aí que se estabeleceram as oito horas de trabalho por dia. Voltar a discutir este tema “é uma necessidade imperiosa”, porque “não se reduziu o tempo de trabalho na mesma dimensão em que se aumentou a capacidade de produzir a partir da utilização da tecnologia e do conhecimento humano”. Até porque, refere, as pressões que se fizeram em prol de mais qualidade no emprego e de melhores salários foram “historicamente o fator mais acelerador das mudanças na organização e estruturação das empresas, dos serviços e da economia”. Mas, quando se faz esta pressão, “as empresas e os interesses instalados reagem muito mal”, afirma o ex-sindicalista. “Para haver uma redução do tempo de trabalho, tem de haver evolução dos salários”, afirma. E podem ser usados vários modelos. “Quando se partir para a discussão, devem levar-se várias hipóteses e não apenas a semana dos quatro dias, de forma a ter em conta as diferentes realidades”, defende. Mas não acredita que se consiga alcançar um acordo na concertação social. “Isto não se vai conseguir com toda a gente a aplaudir”, diz . Pode implicar uma decisão política “musculada”. Afinal de contas, as grandes mudanças em matérias de trabalho, historicamente, “tiveram sempre decisões políticas muito fortes”, como aconteceu com o fim do trabalho escravo. “Com consenso, nunca se teria chegado lá”. O Negócios tentou várias vezes recolher um depoimento da CIP sobre este assunto, mas a confederação patronal não se mostrou disponível.