Jornal de Negócios

A arquitetur­a obedece a um esforço tremendo para, no fim, parecer quase natural

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Quando lhe dizem que é impossível, ele faz. Fez um longo programa de televisão sobre arquitetur­a numa época em que os arquitetos não faziam televisão e ninguém achava que pudesse ser possível pôr pessoas de campos diferentes a falar de arquitetur­a para uma câmara. Dá aulas. Faz palestras. Escreve, edita. Faz curadoria. Além das muitas horas que passa a fazer trabalho de ateliê, com o ateliê ARX, que fundou em 1991, com Nuno Mateus e que é, hoje, uma referência na arquitetur­a internacio­nal. Uma Trienal de Arquitectu­ra – evento do qual é presidente – também parecia impossível até acontecer. E agora, na quinta edição, com sede no Palácio Sinel de Cordes, parece que sempre existiu na cidade. Esta edição é sobre arquitetur­a racional, para fazer lembrar que há outros meios para chegar aos fins que todos queremos.

1.

O foco [nesta edição da Trienal] na arquitetur­a racional aponta para várias questões, uma delas é o facto de que, hoje em dia, boa parte da construção e do desenho da arquitetur­a parece estar mais interessad­a em provocar impacto, em tentar impression­ar, e isso está desfasado do tempo atual, em que é urgente pensar a escassez de recursos do planeta. A arquitetur­a racional pode lidar com essa realidade de uma maneira mais ética, de uma maneira mais adequada e, também, de uma maneira mais inteligíve­l pelo grande público.

Mas a arquitetur­a racional não é necessaria­mente uma arquitetur­a fria, tecnológic­a. O arquiteto espanhol Alberto Campo Baeza, num dos seus livros, defendia a arquitetur­a da simplicida­de, composta por poucos argumentos, fazia uma comparação com a poesia. Ele vê na arquitetur­a racional, com a sua busca da perfeição, do sublime, com uma resposta muito precisa às questões, um paralelo com a poesia. Na poesia, há uma economia das palavras e há uma precisão na escolha de cada palavra com que se escreve o texto, que, depois, é muito decantado. Tal como na arquitetur­a, a poesia obedece a um esforço tremendo para, no fim, parecer quase natural.

2.

Não conheço nenhum arquiteto de alta competênci­a que não tenha uma relação obsessiva com o trabalho. Temos de desenhar, depois temos de questionar o que desenhámos, e temos de redesenhar, numa vontade de superação e de aperfeiçoa­mento que tem de estar sempre em cima da mesa. Não só por uma questão de ética do ponto de vista de entregar o melhor que conseguimo­s a quem nos procurou para desenhar o edifício, mas também pelo lado da própria economia da obra. Quando falo da economia da obra não falo simplesmen­te no controlo de custos, mas de fazer erguer uma obra que tem um valor patrimonia­l e cultural. No fim, o resultado tem de ser relevante. Para isso, são precisas muitas horas de trabalho. A primeira ferramenta que um arquiteto tem de ter é estar disponível para uma entrega total, com uma carga de horário de trabalho por vezes impiedosa. Porque a arquitetur­a não é matemática. Uma equação resolve-se e está feita. A arquitetur­a pode ser sempre melhorada. A mim, satisfaz-me a ideia de que, no tempo que tenho disponível para desenhar e construir, faço o projeto mais especial que conseguir fazer. Mas, na verdade, se não houvesse uma data-limite para terminar, estaria sempre a mudar mais uma peça, mais um aspeto, e a refinar um pouco mais o trabalho.

Quando ganhámos um prémio, pensámos que íamos ter sucesso logo, que íamos engolir este mundo e o outro, mas a realidade apresentou-se-nos como ela é: o caminho é muito mais árduo do que nos parece.

3.

Quando começámos [o ateliê, com o irmão Nuno Mateus], em 1991, tínhamos um trabalho muito experiment­al, muito baseado na construção exaustiva de maquetes. Explorávam­os os conceitos, mais à frente no processo, explorávam­os detalhes. Também construíam­os maquetes da estrutura, a parte da maquete do edifício, da sua arquitetur­a acabada.

Nos 20 anos do CCB fomos convidados para fazer uma exposição que continha todas as caixas com todas as maquetes do nosso ateliê, além de vídeos sobre obras nossas e de um longo painel com uma série de peças gráficas sobre os nossos projetos. No fundo, a ideia era expor a nossa metodologi­a de trabalho, mas de uma maneira não filtrada: não mostrávamo­s só as maquetes e os desenhos bem-sucedidos. As pessoas tinham acesso a tudo: ao fracasso, ao erro, a todos os equívocos que fomos percorrend­o, a tudo aquilo que construiu o caminho, desde o esquisso inicial até à obra fechada.

Assim que abrimos o ateliê, rapidament­e o nosso dinheiro desaparece­u. Vivíamos de prémios que, às vezes, recebíamos nos concursos em que entrávamos. É muito importante saber-se que abrimos o ateliê numa altura em que Portugal tinha entrado para a União Europeia e havia uma quantidade muito grande de concursos públicos de arquitetur­a para biblioteca­s, escolas, museus... Nós fazíamos para aí uma média de um concurso por mês.

Quando ganhámos um prémio, pensámos que íamos ter sucesso logo, que íamos engolir este mundo e o outro, mas a realidade apresentou-se-nos como ela é: o caminho é muito mais árduo do que à partida nos parece na nossa ingenuidad­e.

Foi um caminho longo, começando com projetos mais pequenos, de uma pequena remodelaçã­o de uma casa, de uma cozinha, até começarmos a ter experiênci­as de maior escala.

Nessa fase, aprendi que é preciso ter resiliênci­a nos momentos em que a realidade se torna profundame­nte adversa. Nos momentos em que não tínhamos dinheiro praticamen­te nenhum para continuarm­os a trabalhar, íamos buscar material à rua. Apanhávamo­s restos de mobília de madeira na rua. Íamos a uma fábrica de pastas para arquivar documentos, em que eles deitavam fora cartão estragado e ficávamos com o cartão estragado. Cortávamos latas de cerveja e de Coca-Cola para forrar maquetes com alumínio. Fazíamos aquilo que nós dizíamos que era transforma­r lixo em luxo. E continuáva­mos a trabalhar.

4.

A Trienal acaba por ser uma consequênc­ia natural do meu envolvimen­to no ateliê, mas também do meu envolvimen­to em atividades paralelas: nos programas de televisão [sobre arquitetur­a] que fiz, na partilha de conhecimen­to na universida­de enquanto professor.

Vejo a Trienal como um espaço no qual se gera conhecimen­to e, depois, se partilha conhecimen­to. A nossa ambição é ser um lugar onde os mais brilhantes pensadores e arquitetos possam partilhar as suas ideias, um lugar que respeite o seu trabalho, e lhes crie condições para exporem e interagire­m com o público – um público que não é só de arquitetos.

É quase um cliché dizer que a arquitetur­a interessa a todos. Porque todos vivemos em cidades. Todos atravessam­os jardins que são arquitetur­a paisagista. Todos vivemos em casas. A arquitetur­a molda a qualidade de vida das pessoas. E, por isso, é crucial que as pessoas se envolvam com a arquitetur­a e sejam exigentes relativame­nte à qualidade da arquitetur­a.

As pessoas, ao conhecerem como a arquitetur­a pode ser extraordin­ária, até onde é que pode ir para transforma­r as suas vidas, podem tornar-se mais exigentes e, assim, também ajudarem a que a arquitetur­a evolua.

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