Jornal de Negócios

A M Ú S I CA DA D O R

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Ao fim de 40 anos de carreira, Nick Cave fez um dos seus trabalhos mais fortes e tocantes, uma meditação sobre a vida e a mortalidad­e e sobre o luto. Aqui, as suas canções partem de uma terrível experiênci­a pessoal que já tinha marcado o seu disco anterior, “Skeleton Tree”, de 2016, que gravou pouco depois da morte, num acidente, do seu filho adolescent­e. O disco e o documentár­io que acompanhou a sua produção, “One More Time With Feeling ”, são fruto de um momento dramático. Mas neste “Ghosteen”, um duplo CD, Cave vai ainda mais longe e de forma muito mais profunda. No novo disco continua a marca da dor, a sombra do desespero, mas também a busca da própria vida, procurando uma razão para continuar. Musicalmen­te, o disco vive da criação de espaços, de ambientes carregados de sentimento­s como por vezes só a música permite fazer, entre palavras que organizam a meditação ao mesmo tempo que procuram um enquadrame­nto para reforçar os laços entre os que (sobre)vivem. Um dos pontos incontorná­veis de “Ghosteen” é a clássica lenda budista de Kisa Gotami, que Nick Cave relata. Depois de perder o seu filho, Gotami procura o apoio e conselho do Buda, que a manda procurar e trazer sementes de mostarda de cada casa onde ninguém tenha morrido na família. Ela acaba por perceber que a morte entra em todas as casas, em todas as famílias e regressa, sem as sementes, ao Buda que a conforta e lhe abre caminho a uma nova forma de encarar a vida. “Everybody’s losing someone/ It’s a long way to find peace of mind”, evoca Cave num dos momentos em que canta num registo acima do habitual, reforçando o dramatismo da interpreta­ção. É impossível escolher canções aqui, mas arrisco destacar “Bright Horses” no primeiro disco e dois temas fortíssimo­s no segundo, aquele que dá título ao álbum, “Ghosteen”, e o final, “Hollywood”, que são duas das mais marcantes canções que Cave escreveu em toda a sua carreira.

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