Jornal de Negócios

Um homem no seu estado pouco sólido

- MARCO ALVES

Bukowski, o grande escritor visceral e um pouco maldito, não escondia ao que ia nas suas crónicas. Eram as “notas de um velho nojento”.

Charles Bukowski chamava-lhe “o jornal mais vibrante da América” naquele tempo. Era o “Open City”, um epifenómen­o alternativ­o, radical, que durou apenas dois anos, de 1967 a 1969, cheios de polémicas e alguns processos por atentado ao pudor. No seu pico, as vendas não ultrapassa­ram os 50 mil exemplares.

Se o “Open City” era um filho tresmalhad­o de Los Angeles, um dos seus principais colaborado­res era a personific­ação do “bas-fond” da cidade, do politicame­nte incorreto vivido, falado e escrito. Era Charles Bukowski, como já se deduziu.

O fim deste jornal marcou também o início da carreira de Bukowski como escritor a tempo inteiro. Estava com 49 anos e largava finalmente a sua enfadonha carreira nos correios. Que uma personalid­ade como Bukowski tenha trabalhado tanto tempo nos correios é uma das maiores ironias da história da literatura. É o equivalent­e a Michel Houellebec­q ter sido TOC até há pouco tempo.

À sua boa maneira, Bukowski chamou à sua crónica “Notas de um velho nojento”. Todas as “nojices” que ele andou a fazer (álcool, jogo, violência, dívidas, discussões, maledicênc­ia, linguagem obscena, tabaco, orgias, misoginia, misantropi­a, homofobia, etc.) eram, digamos assim, de pequena ordem, privadas, inofensiva­s, sem aparente intenção de fazer mal.

O público condoía-se com a sua sinceridad­e, a sua comicidade trágica, as suas aventuras. “Não havia nenhuma espécie de pressão, bastava sentar-me à janela, pegar na cerveja e deixar correr.”

Corria tão bem (corria tão mal é mais adequado dizer) que os leitores se fidelizara­m ao estilo desabrido, desbocado, incorreto, desgraçado, infeliz, solitário, depressivo e decadente. “Já me apareceu um mendigo com um cigano e a mulher do cigano, e ficámos à conversa, a dizer porcarias e a beber metade da noite. Há uma telefonist­a de Newburgh, em Nova Iorque, que me manda dinheiro. Diz que quer que eu deixe de beber e que comece a comer como deve ser. Já veio um médico bater-me à porta. ‘Costumo ler a sua crónica e acho que posso ajudá-lo. É que já fui psiquiatra’. Mandei-o embora. Espero que esta seleção de crónicas vos possa ajudar. Se quiserem mandar-me dinheiro, tudo bem.”

Estão aqui catorze meses de crónicas semanais, de tamanho irregular, muitas refletindo naturalmen­te toda uma turbulênci­a datada, a dos anos 1960 na América, dos assassinat­os dos políticos até à guerra do Vietname, outras pouco dizendo à cultura portuguesa (o melhor exemplo são as corridas de cavalos e o beisebol), mas em todas elas o fio condutor intemporal do estilo de Bukowski.

“A linha do comboio passava mesmo à frente da minha janela. O comboio iluminava o quarto todo. E eu a ver carruagens cheias de caras. Caras horríveis: putas, orangotang­os, cabrões, loucos, assassinos – os meus mestres todos. Depois, o comboio partia rapidament­e e o quarto voltava a mergulhar na escuridão – até à próxima carruagem cheia de caras, que chegava sempre cedo demais. Eu precisava mesmo do vinho.”

 ??  ?? C HAR LE S BU KOWSKI Notas de um velho nojento Alfaguara, 3 0 4 páginas, 2 019
C HAR LE S BU KOWSKI Notas de um velho nojento Alfaguara, 3 0 4 páginas, 2 019
 ??  ?? RI C HAR D FO RD O jornalista desportivo Porto Editora, 424 páginas, 2 019
RI C HAR D FO RD O jornalista desportivo Porto Editora, 424 páginas, 2 019
 ??  ?? C H RI STO PH E R AN DREW O mundo secreto Dom Quixote, 552 páginas, 2 019
C H RI STO PH E R AN DREW O mundo secreto Dom Quixote, 552 páginas, 2 019
 ??  ?? E DUARDO DÂMASO Corrupção Objetiva, 296 páginas, 2 019
E DUARDO DÂMASO Corrupção Objetiva, 296 páginas, 2 019

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