Jornal de Negócios

De canhão apontado

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Tiananmen é uma criação platónica do meu amigo Victor. A vagarosa humanidade abriu os olhos, espantada, em 1989, para os protestos na poética Praça da Paz Celestial, em Pequim. E abateu-se sobre as nossas almas o silêncio frio que precede a tragédia, quando um solitário cidadão chinês, singela camisa e calça, opôs a sua humilde fragilidad­e tolentina ao poder dos explicativ­os tanques que o comité central mandou para dissuasiva conversa com o povo da rua. Dancin’ in the street, o mundo assistiu então ao bailado de um homem e um tanque, “pas de deux” de canhão apontado, que tornou obnóxia e risível a velha arte de Fred Astaire, Gene Kelly e Cyd Charisse. Ontem, num desses almoços em que só se serve o húmido empadão do passado, mousse de nostalgia à sobremesa, soube que, antes de Tiananmen, a matriz dessa arriscada e épica dança nascera em Luanda, no dia 27 de Maio de 1977. Dançou-a o Victor, meu amigo, kamba, irmão de várias fés. O que nos juntou, no final dos anos 60 hippies, “make love not war”, foi Jesus Cristo, bailarino de cruz e espinhos. Jurámos por ele e fomos, de musseque em musseque, pelo método Paulo Freire alfabetiza­r o povo de Luanda, para que um dia pudesse recitar poemas nas suas praças de Tiananmen. E se alguém disser que não foi isso o que objectivam­ente fizemos, direi que foi com essa subjectiva intenção piedosa que o quisemos fazer. Resumindo, foi com o coração a gotejar de alegria e a alma a entoar hossanas que recebemos a independên­cia de Angola, a nossa dipanda. E descruzámo-nos, eu e o meu Victor. Eu de esqueleto e músculos oferecidos ao monástico maoismo e bando dos quatro, o Victor encantado com a sufocante vodka soviética e o fidelizado charuto havano.

E agora vejam como dançava o Victor, com o seu branco corpo trangalhad­anças nascido em Portugal e a sua bem negra alma angolana. Um dia, na turbulenta Luanda pós-independên­cia, roubaram-lhe um táxi que ele comprara e pintara de preto, um daqueles rijos Mercedes que duravam os quarenta anos de uma ditadura. Vai ele já noutro carro e vê o Mercedes gloriosame­nte guiado por um soldado das Faplas, ou seja, um John Wayne caluanda. O Victor ultrapasso­u-o, guinou para a direita e chocou contra ele. O cowboy saiu de AK na mão. “E agora quem vai pagar o arranjo?”, reclamou-lhe. O Victor disse: “Eu pago o arranjo dos carros. São os dois meus!” O faplinha apontou-lhe a AK, aqui para nós a Scarlett Johansson das metralhado­ras. “Dispara já então, camarada, ou foge a pé. Vou chamar o comando, acuso-te de ladrão e não vai ficar bom para ti.” E eis como o Victor ficou com dois carros, numa avenida de Luanda, tendo de explicar como ia a conduzir os dois e chocou contra si mesmo.

Não sabia, ainda, que este fora só um ensaio. O 27 de Maio de 1977 foi dia de golpe de Estado, Nito contra Neto, um banho de sangue. A amada do Victor estava a trabalhar no velho Hospital Maria Pia e sussurram-lhe um “foge, que estás aqui a correr perigo”. O Victor foi em velocidade buscá-la. Mas na volta, já os dois, no cruzamento que leva ao palácio do presidente, cortam-lhe a passagem. Um tanque avança para o carro, o canhão move-se e visa-o. O Victor sai e a equipagem do tanque ameaça: “Ninguém passa. Recua já camarada!” O Victor, o seu carro obstinado como o heróico chinês de Tiananmen, respondeu: “Passo, sim, camarada. Vou para casa. Ou tens de matar aqui!” Do nada, mandado pelo génio da lâmpada, surge um comandante: “Deixa passar o homem.” E o tanque, pernas de Fred Astaire, amochou e recuou.

A vagarosa humanidade abriu os olhos, espantada, em 1989, para os protestos na poética Praça da Paz Celestial, em Pequim. E abateu-se sobre as nossas almas o silêncio frio que precede a tragédia.

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