Jornal de Negócios

Ecrãs de julgamento

- WILSON LEDO

Um beijo inesperado provoca um aparatoso acidente. De quem é a culpa? Num mundo onde a informação parece não abrandar, exige-se um réu. Nas redes sociais, e até que sejamos nós a sentarmo-nos nessa posição, torna-se tão confortáve­l apontar o dedo.

Foi há cerca de cinco anos que Cristina Carvalhal procurou saber mais sobre Ödön von Horváth: autor de origem croata, que escreve no período entre guerras, num contexto de recessão económica e testemunha­ndo a ascensão do nazismo. Havia margem, então, para um paralelism­o.

“Fazia sentido. Portugal estava então sob assistênci­a financeira e as histórias que ouvíamos vindas da Grécia eram aterradora­s. Em toda a Europa crescia a extrema-direita – e cresce, hoje ainda. Tal como a ameaça da crise, que faz crescer o medo. Nestes ambientes é muito fácil, por uma questão de sobrevivên­cia, instalar-se a lei do mais forte”, conta a encenadora.

E é a partir deste contexto que “O Dia do Juízo” chega agora a cena ao São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa. Para se debruçar sobre o binómio culpa-inocência e questionar a responsabi­lidade de todos e de cada um no desenrolar dos acontecime­ntos. Um texto do século passado que não perdeu pertinênci­a – pelo contrário, mostra-se mais relevante com a evolução constante dos fluxos de informação.

“Cada vez temos menos tempo para refletir. O imediatism­o, o excesso de informação e a ausência de filtros ou referentes são assustador­es. O facto de estarmos sempre ‘online’, de termos acesso a tudo em quase tempo real, também nos torna mais responsáve­is. E, no entanto, a noção de culpa está cada vez mais diluída”, aponta Cristina Carvalhal.

Cada fluxo de informação é engolido pelo seguinte. Não há margem para que algo se fixe, para se retirarem consequênc­ias. De bestiais a bestas, de heróis a criminosos, sempre de forma cíclica. É tendo em conta este estado de coisas que a peça recorre à linguagem vídeo em cena. “Procura-se sinalizar esse imediatism­o das imagens e da aparência, de um excesso de informação em detrimento de uma estruturaç­ão do pensamento”, justifica a criadora.

Neste “O Dia do Juízo”, em plena estação de comboios, um beijo inesperado resulta num aparatoso acidente. De quem é a culpa? O palco replica as lógicas das redes sociais. “As redes sociais são hoje um espelho da justiça popular, que se debate com a justiça humana e a justiça divina, chamadas a cena por Horváth”, explica a encenadora. Em cada ecrã, um dedo pronto a ser apontado. A tecnologia mudou-nos ou limitou-se a revelar o nosso lado negro?

“O D IA D O J UÍZO” A PEÇA EN CENADA PO R CRISTI NA CARVALHAL ESTÁ EM CENA N O SÃO LU IZ TEATRO M U N I CI PAL, EM LISBOA, ATÉ 20 D E O UTU BRO.

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