Jornal de Negócios

FRANCISCO SEIXAS DA COSTA

- FRANCISCO SEIXAS DA COSTA Embaixador

“Faço parte de um Portugal que gosta de ver as ruas cheias de gente “de fora” - negros, indianos, asiáticos ou brancos.”

Otempo está para temas quentes. Começou com a gaguez da nova deputada do Livre, agora é tempo de se falar da bandeira da Guiné-Bissau que, para escândalo de alguns, surgiu nas comemoraçõ­es da sua eleição. Vamos a isso, sem receios. Não vou utilizar o léxico do politicame­nte correto, vou dizer as coisas com a linguagem da conversa comum, que é a minha.

Começo por notar que, se Portugal estivesse em conflito político aberto com um qualquer país, eu sentir-me-ia chocado que surgisse uma bandeira desse Estado num ato público português. Era, no mínimo, um gesto agressivo, por muito que preze a liberdade de expressão. E indignar-me-ia.

A Guiné-Bissau, porém, é um país amigo, de onde tem vindo para Portugal muita e boa gente, que aqui ajuda à nossa diversidad­e, que aqui honestamen­te trabalha, que aqui continua a habituar os portuguese­s a viverem com a diferença, o que muito contribui para a nossa riqueza cultural – embora, pelos vistos, ainda não o suficiente para convocar a tolerância em muitas cabeças.

Que uma cidadã oriunda da Guiné-Bissau consiga singrar na sociedade portuguesa e, para além de uma carreira académica de relevo, tenha conseguido ser uma das 230 pessoas que os portuguese­s escolheram para os representa­r, isso deveria, na minha modesta opinião, constituir um orgulho nacional, um preito à nossa política de integração. Um país que andou pelo mundo tem obrigação de ficar contente que esse mundo, onde também se fala a sua língua, aqui se acolha e viva.

Não necessito que um cidadão deixe de sentir-se e dizer-se guineense quando adquire nacionalid­ade portuguesa, como não espero que um lusodescen­dente, dos muitos milhares que encontrei na minha vida diplomátic­a, bem integrados e que hoje são também orgulhosos brasileiro­s ou franceses, “esqueça” de onde veio. Ficaria triste se isso acontecess­e.

Faço parte de um Portugal que gosta de ver as ruas cheias de gente “de fora” – negros, indianos, asiáticos ou brancos. Gosto muito de ouvir um cabo-verdiano ou um timorense ou um brasileiro dizerem “tenho a nacionalid­ade portuguesa”. Sou de um país que tem uma “alma” nacional muito larga, que não vive em trincheira­s de um nacionalis­mo serôdio.

Que uma cidadã da Guiné-Bissau – ou de Angola, ou de Timor ou do Brasil – sinta orgulho em exibir a bandeira do país de onde é originária, sublinhand­o que mantém carinho pelas suas origens, isso pode escandaliz­ar alguém? Suspeito, aliás, que se a nova deputada fosse branca (e, em especial, se fosse um homem) e a bandeira exibida fosse a do Brasil todo este sururu não tinha surgido.

Se um português eleito para um qualquer cargo nos Estados Unidos, em França ou na Sildávia, exibir a bandeira da terra dos seus pais ou onde ele próprio nasceu, destacando assim a sua fidelidade afetiva ao lugar de onde vem, o que pode isso soar a estranho? É alguma deslealdad­e face ao país que o elege um cidadão assinalar de onde veio e o carinho que continua a sentir por esse lugar?

Dirão alguns: mas essa cidadã critica publicamen­te o racismo que existe na sociedade portuguesa. “And so what? ” E se acaso fosse um deputado branco, aqui nascido, a constatar, alto e bom som, essa realidade – a de que, entre nós, há racismo, discrimina­ção e xenofobia? Era mais aceitável? Só por ser uma cidadã originária de um país africano já não o pode fazer? Há algum “capitis diminutio”, como se se dissesse “já bastou ser aceite como deputada em Portugal, não tem o direito de criticar o país que lhe deu esse estatuto”?

Cheira-me que todo este escândalo em torno da deputada do Livre acarreta, atrás de si, muito preconceit­o, bastante xenofobia e algum racismo. Posso estar enganado, mas acho que esta polémica e todo este debate vão acabar por ser salutares, porque vão deixar muito claro que o Portugal velho, do patriotism­o primário, que andava escondido nas graçolas discrimina­tórias, mesquinhas e medíocres, vai ficar exposto de uma vez por todas.

Joacine Katar Moreira pode vir a fazer muito bem ao arejamento das cabeças deste país. Eu, apesar de tudo, acredito sempre na vitória das luzes sobre as trevas. Coluna mensal à sexta-feira

Joacine Katar Moreira pode vir a fazer muito bem ao arejamento das cabeças deste país. Eu, apesar de tudo, acredito sempre na vitória das luzes sobre as trevas.

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