Jornal de Negócios

O drama orçamental da sobrinha Alice

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A minha sobrinha Alice, que é esperta como um alho, anda num desvario. A rapariga veio ter comigo aflita, ai tio, ai tio, ai tio, um deus me acuda resfolegan­te, e eu, tem calma Alicinha, tem calma, respira, o que se passa, minha querida sobrinha, para estares nesse estado, até parece que a angústia te salta dos olhos.

Ai tio, que já não sei o que fazer. Sei que sou esperta como um alho, porque o tio me está sempre a dizer isso, mas nem o facto de o alho ter muitas cabeças, o que teoricamen­te permite uma pluralidad­e de pensamento­s, está a ajudar, antes pelo contrário, parece que tenho várias cabeças na minha cabeça e que estão todas às turras.

Pois, o Brexit tem esse efeito.

Antes fosse o Brexit, tio.

Já percebi. Olha, Alicinha, o melhor é resignarmo-nos a mais uma vitória de Trump e aceitar que vamos ter de o aturar mais uns aninhos, para sossego da Melania.

Antes fosse o Trump, tio.

Ora bolas, dileta sobrinha. Estás a confundir-me. Não consigo identifica­r outro tema capaz de suscitar tanta agonia e isso angustia-me também, na medida em que parece que estou a perder predicados e não consigo sobreviver apenas com complement­os diretos.

Ai tio, não diga isso, que me deixa ainda mais perturbada. Longe de mim querer provocar-lhe problemas de natureza gramatical.

Então, diz o que te atormenta Alicinha, que não aguento tanto não saber.

Olhe, tio, sucede que impus a mim mesma acompanhar o debate e a votação do Orçamento do Estado para 2020 e…

… Como te atreveste, sobrinha! Isso equivale a quereres viver no cérebro de Freud. É um risco superlativ­o.

Confesso que, apesar de ter muitas cabeças como o alho, não pensei nisso. A ideia era a de perceber a mecânica de funcioname­nto do Parlamento e a forma como os deputados gerem a coisa pública.

E…

… E deu-me um curto-circuito. Não sei se foi por causa do IVA da eletricida­de, das avocações, ou de tentar racionaliz­ar como é possível debater 1.300 propostas em 442 minutos, o que dá uma média de 20 segundos para cada uma. A coisa foi de tal maneira que até o sistema de votação do Parlamento sucumbiu a esta demanda homérica. O Parlamento e eu. Às 4 da madrugada de olhos arregalado­s e a minha mãe, ai Alice que te desgraças, eu dividida entre a linha circular do metro e a extensão a Loures, e a minha mãe, ai Alice não vês que isto é tudo uma palhaçada, vai mas é deitar-te, e eu, calma mãe, que esta votação da videointer­pretação é decisiva para o futuro da nação, e a mãe, palhaçada é o que é, e eu, mas os deputados estão de fato, e ela, são palhaços ricos, e eu, mãe, isto é democracia a funcionar, e ela, verrinosa, pois a democracia funciona, mas tu é que estás com a cabeça avariada.

E não é que a mãe tinha razão, tio. Estou mesmo com a cabeça avariada e ando a rir como o Jack Nicholson no filme “Shining ”. Estou perdida em mim mesmo e só me apetece pôr a cara do doutor Ferro Rodrigues em obras, de modos que ele fique parecido com o André Ventura.

Tem calma, Alice, muita calma. Tu estás a viver um drama. Precisas de ajuda.

Tio, foi por isso que vim pedir o seu socorro. Estou tão mal, que já não consigo distinguir a proposta 15C-1 e a emenda - N.º 1, Artigo 58.º da proposta 298C-2 e do aditamento novo do N.º 2, Artigo 58.º. Será que isto é realmente grave?

É.

E agora?

A única solução é mesmo a de trocares alhos por bugalhos. Trocas a ARTV pelo canal Panda, e a coisa irá passar. Faz isso e depois conta-me como foi. Ou não.

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