Jornal de Negócios

O que seria o mundo sem o senhor Palomar?

Republica ção do último livro escrito em vida pelo italiano Italo Calvino.

- MARCO ALVES

Nascido por “acidente” em 1923 em Cuba (onde os seus pais, um agrónomo e uma botânica, trabalhava­m), o italiano Italo Calvino é um nome incontorná­vel da literatura europeia do século XX, muito por culpa de “As Cidades Invisíveis”, original de 1972 que imagina e recria as viagens de Marco Polo, inventadas e contadas por este ao imperador Kublai Khan, que assim as “vivia”.

“Palomar” é de 1983, sendo portanto a última obra em vida de Calvino – que viria a morrer em 1985. É também por isso que é tentador dizer que é um livro no inverno da vida (passe o cliché da expressão), não no sentido de ajustes de contas, antes no seu caráter contemplat­ivo.

O livro, que Calvino começou em 1975 e foi interrompe­ndo, está dividido em três partes: “As férias de Palomar”, “Palomar na cidade” e “Os silêncios de Palomar”. Cada uma destas partes está também dividida. Exemplos: “Palomar na praia”, “Palomar observa o céu” e “Palomar no jardim zoológico.” É uma divisão simples e quase pueril em 27 capítulos.

Palomar é um observador (o próprio nome que o autor lhe dá, Palomar, é uma referência ao observatór­io astronómic­o que existe na Califórnia desde 1928). “Homem nervoso, vivendo num mundo frenético e congestion­ado, o senhor Palomar tende a reduzir as suas relações pessoais com o mundo exterior e, para se defender da neurasteni­a generaliza­da, procura, tanto quanto possível, manter as suas sensações sobre controlo.”

As suas observaçõe­s começam na praia, onde Palomar tenta isolar uma onda de todas as outras (mais à frente no livro vai fazer o mesmo com os bandos de estorninho­s que, no fim do outono, pernoitam em Roma no seu trânsito migratório para África).

O capítulo chama-se “Leitura de uma onda”. Entre consideraç­ões puramente mecânicas e marítimas, que quase sempre parecem parábolas de questões existencia­is maiores (“Talvez pudesse ser essa a chave para dominar a complexida­de do mundo, reduzindo-a ao seu mecanismo elementar”), Palomar perde a paciência. “Afasta-se pela praia fora, com os nervos tão tensos como quando chegara, e ainda mais insegura acerca de tudo.”

Segue-se “O seio nu”, uma quase comédia de situação sobre o que fazer perante uma mulher que avistamos a fazer topless. Como se comportar quando se cruzarem? Ignorar? “Mas, fazendo-o, não será isso rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, considerá-la um objeto e, o que é ainda pior, considerar como um objeto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?”

Palomar decide então voltar para trás e desta vez não ignorar o seio nu, para que “se note uma descontinu­idade, um desvio, quase um sobressalt­o.”

São pequenos capítulos nos quais Palomar se interroga sobre o sentido do mundo através das pequenas coisas que observa “com atenção fria”. Que até podem ser, porque não, duas tartarugas que acasalam num jardim. “O que será o eros quando no lugar da pele existem placas de osso e escamas córneas? ”

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Palomar Dom Quixote, 16 0 páginas, 2 02 0 ITALO CALVI NO

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