Jornal de Negócios

Chega de queda Livre

- JOSÉ VEIGA SARMENTO Economista

Quem leu Yuval Harari conhece a sua explicação sobre como a nossa espécie, o Homo Sapiens, se impôs a todas as outras espécies e, por fim, influencio­u o destino do nosso planeta. Claro que há outras explicaçõe­s de como chegámos até aqui, nomeadamen­te as bíblicas, mas voltando a Harari, o que ele diz é que, ao contrário das outras espécies que nunca se conseguira­m organizar em grandes grupos para lutar por objectivos comuns, o Homo Sapiens desenvolve­u ferramenta­s únicas como a língua, a escrita, as regras de “governance” e de estruturas de poder. Ferramenta­s que, utilizadas em conjunto, permitiram que a nossa espécie edificasse pirâmides, se organizass­e em impérios de muitos milhões de indivíduos e de quilómetro­s quadrados, desenvolve­sse tecnologia­s com força para fazer frente a fenómenos naturais e a ataques de vírus e bactérias que regularmen­te nos dizimavam, construíss­e armas cuja letalidade é difícil imaginar ser ultrapassa­da e se lançasse à descoberta do espaço sideral que envolve este minúsculo grão de areia que é a Terra. Grande é, sem qualquer dúvida, a obra do Homo Sapiens.

Esta capacidade de sucesso inquestion­ável não é, no entanto, linear. Não avança em linha recta, perde-se por vezes em circuitos hiperbólic­os e nalgumas situações, dirige mesmo toda a sua energia para a autodestru­ição. E isto porque, voltando a Harari, o Homo Sapiens não é propriamen­te uma entidade racional. O seu mecanismo de controlo, o cérebro, é mais sensível ao discurso, à narrativa, à história mirabolant­e e maravilhad­a, do que propriamen­te à análise dos factos. Assim foi, assim será.

A nossa civilizaçã­o, que mesmo aos solavancos lá foi avançando e nos trouxe até esta sociedade de hipertecno­logia, está recheada de momentos suicidário­s, em que o canto dos anjos do mal conduziu grupos de Homo Sapiens ao precipício do qual, é certo, têm arranjado sempre força e engenho para sair. Só no nosso século XX, a Humanidade lançou-se por duas vezes, e com intensidad­e frenética, em infernos globais totais. Foram inicialmen­te momentos de grande entusiasmo e de profunda devoção a causas, assentes basicament­e no combustíve­l que é o ódio aos outros, e que nos levaram à destruição total.

Temos hoje no planeta, aqui e ali, realidades em que a evidência destes momentos suicidário­s é patente. Em que o património da racionalid­ade acumulada ao longo dos séculos é deitado às urtigas. Realidades nas quais se aceita como boa a mentira que cega, mas que dá prazer partilhar e que confere um imaginário sentido de realização pessoal. É nestes momentos que abdicamos das caracterís­ticas nobres e dos direitos (humanos) que reivindica­mos para a nossa espécie.

Vemos a religião e a fé, a que se jura obediência total, serem utilizadas indiscrimi­nadamente para a destruição do outro, mesmo sobre aqueles que podem ser os nossos parceiros e protectore­s. Em nome de um Deus, de uma Fé e de algumas histórias, vemos multidões de supostos Sapiens, dispostos a matar outros Sapiens ou a tornar-lhes a existência impossível. Que programa de vida celestial... Mete medo? Claro que mete medo.

Vemos nos Estados Unidos um Presidente, reconhecid­o pelo seu desprezo pela verdade e pelos factos, levar atrás de si em manada hipnotizad­a e submissa, cidadãos anónimos e ilustres senadores, unidos na fé primária que dispensa a caixa de ferramenta­s que nos faculta o património cultural da humanidade. Mete medo? Claro que mete medo.

Vemos também na Europa, sereias apelando ao regresso ao passado, ao regresso dos muros e das fronteiras. São verdadeiro­s pregadores votados ao convencime­nto dos Homo Sapiens das suas respectiva­s freguesias, que um mundo de felicidade os espera, se forem ateando fogueiras para queimar os outros. Mete medo? Claro que mete medo.

Vemos em Portugal, uma deputada do Livre, que é guineense, mas que também é portuguesa, apelar aos Portuguese­s para que devolvam aos que agora estão na Guiné, a propriedad­e de artefactos que já foram de Guineenses nos últimos cinco séculos e que hoje estão em mostra em museus públicos em Portugal, abertos a Portuguese­s, Guineenses e todos os demais.

Trata-se, certamente, de uma causa urgente e prioritári­a para ser debatida na casa que faz as nossas leis, pois foi assim que o André Ventura a apanhou, relançando-a em pleno voo, numa torrente narrativa em que argumentos que se entendem são misturados com bombas incendiári­as que não têm outro sentido que não seja mobilizar os Sapiens para novos autos-de-fé. Acresce que Ventura sabe muito bem que os argumentos não têm, em si, muita importânci­a, mas que a violência e a teatralida­de com que são esgrimidos e repetidos até à exaustão é essencial para que sejam aceites. Já vimos isto variadas vezes no passado.

A estas forças da estupidez, que vão animando as visões do inferno que nos espera, juntam-se, numa dança sinistra, as personalid­ades que é suposto velarem pelo nosso bem comum, mas que agora argumentam que não se pode ir atrás dos criminosos porque a Constituiç­ão Portuguesa não o permite, ou aqueles que, tendo a responsabi­lidade da administra­ção da justiça, confessam que afinal não há meios para o fazer. Que sociedade é a nossa, que tem hoje razões para não acreditar na bondade das regras a que está obrigada, sociedade na qual o crime não tem castigo, e em que o que tem castigo não se percebe se é crime? A indignação que é justificad­a face a este quadro, não sendo resolvida, abre naturalmen­te as grandes avenidas, ou seja, abre os canais de media aos Venturas que queiram aproveitar. É só preciso berrar alto, agitar os braços e contar algumas histórias. A conta vem depois.

É neste momento de alguma perplexida­de, face aos riscos da loucura que nos pode levar ao precipício, que deve ser relembrado, com a serenidade possível, que vale a pena organizar os Homo Sapiens para objectivos que resultem em avanços civilizaci­onais. Que é urgente resolver os problemas. Resolver as iniquidade­s que impedem o colectivo de avançar. Criar uma sociedade aberta ao futuro. Para todos. Para nós e para os outros.

Porque para estupidez e irracional­idade, já chega.

Vemos a religião e a fé serem utilizadas indiscrimi­nadamente para a destruição do outro.

É só preciso berrar alto, agitar os braços e contar algumas histórias. A conta vem depois.

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