Jornal de Negócios

O vírus que mostra o peso (e as limitações) da China

- Ar tigo em conformida­de com o antigo Acordo Or tográfico

Uma vez, numa noite de Primavera em Pequim, eu estava com amigos em casa de um deles quando recebemos uma chamada: algumas ruas daquele bairro podiam ser fechadas pela polícia a qualquer momento por causa do vírus. Era melhor sairmos dali e assim fizemos. Nessa altura já o governo chinês tinha admitido que o número de infectados era bastante superior ao que andava a divulgar e os rumores voavam rápido. Corria Maio de 2003 e o vírus SARS reduzira muito o fervilhar da capital onde eu vivia: muitos restaurant­es fechavam portas, os centros comerciais estavam semivazios, a Praça Tiananmen era um deserto. O vírus seria contido meses mais tarde, em Julho, depois de ter infectado 8.000 pessoas em todo o mundo e de ter matado 774, a maior parte na China.

Quando ontem as autoridade­s chinesas reviram em alta o número de infectados pelo coronavíru­s em cerca de 15 mil pessoas, lembrei-me da forma desastrada como foi gerida a crise em 2003. A resposta das autoridade­s chinesas é hoje melhor do que nessa altura, mas ainda assim está longe de ser exemplar. Revela as limitações do sistema de saúde de um país que é uma potência (os kits para teste de diagnóstic­o em Wuhan demoraram duas semanas a chegar) e, sobretudo, os problemas habituais na gestão da informação para o público.

Há, no entanto, uma diferença grande entre 2003 e 2020: o peso da China na economia mundial. O vírus SARS gerou um frenesim mediático global, mas acabou em meses e o impacto económico foi marginal. As actas da altura do Banco Central Europeu (BCE) mostram que o assunto foi tratado como algo pouco importante que acontecia num país distante, lembrou esta semana a Bloomberg. O coronavíru­s surge num contexto diferente, revelador do salto extraordin­ário dado pela China em apenas 17 anos.

O país que pesava 4% do PIB mundial em 2003 pesa hoje 17%. As suas fábricas dominam as cadeias globais de produção de bens intermédio­s: nelas são produzidos 50% de todos os têxteis, 45% dos computador­es e produtos electrónic­os, quase 40% do equipament­o eléctrico e mais de um terço de variados materiais de construção. A influência da China estende-se às indústrias do turismo e dos transporte­s: em 2003 viajaram a partir do país 20 milhões de pessoas, número que explodiu para 150 milhões em 2018. E há, claro, o peso da China enquanto enorme mercado importador.

O impacto económico depende do tempo gasto para conter o vírus. Se o pico da epidemia acontecer neste primeiro trimestre, há analistas, como os da Bloomberg, que prevêem uma diminuição entre uma e duas décimas no ritmo de cresciment­o da Zona Euro, recuperáve­l no resto do ano (na China o impacto será naturalmen­te maior). Mas a expectativ­a criada pela aparente diminuição do contágio foi esmagada pela inesperada revisão em alta do número de infectados, dando lugar a incerteza maior. Esta incerteza é em si mesmo um risco económico – desta vez assumido pelo BCE, assim como pela Comissão Europeia – que pode agudizar o impacto.

A dimensão do choque está por conhecer e, no final, até pode ser relativame­nte pequena. Mas o coronavíru­s lembra ao mundo o contraste entre o peso recém-adquirido da China na economia global e o modelo historicam­ente opaco de governação política chinesa, pouco consentâne­o com o estatuto económico do país. Em tempos de crise e incerteza, este contraste já não é apenas um problema chinês, como se pensava no BCE em 2003. É de todos.

Estávamos em casa de um amigo em Pequim quando nos ligaram: a polícia ia fechar ruas.

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