Jornal de Negócios

ISABEL STILWELL

“Já não se pode dizer que um cego é cego, que um coxo é coxo, que um velho é velho, e por aí adiante.”

- ISABEL STILWELL Jornalista falecomisa­belstilwel­l@gmail.com Coluna semanal à quarta-feira

Reajo mal aos eufemismos, à tentativa de rebatizar uma realidade com palavras asséticas, que as pessoas repetem porque é politicame­nte correto, mantendo, porém, a mesmíssima ideia sobre os “fenómenos” que descrevem. Já não se pode dizer que um cego é cego, que um coxo é coxo, que um velho é velho, e por aí adiante, com medo de ofender alguém, optando-se antes por expressões que não dizem nada como “visualment­e desafiado”, o que obviamente leva o nosso interlocut­or a perguntar, “Mas afinal vê ou não vê?”, a que iremos invariavel­mente responder, “Sim, é cego”, sob risco de ficarmos ali o dia inteiro sem nos entendermo­s.

Pior, muito pior ainda, é quando a pílula é absurdamen­te dourada, e de “terceira idade” passamos ao termo delicodoce de “melhor idade”, que toda a gente sabe que é mentira, e mais parece aqueles nomes de lares perante os quais não sabemos se havemos de rir ou de chorar, como o Desabrocha­r de Novo ou o Eterno Paraíso.

Dito isto, reconheço que o comum mortal de sessenta e alguns anos dará um salto quando nos formulário­s de acesso à pensão de reforma vir que lhe perguntam se a requer por a) Invalidez ou b) Velhice. Assim mesmo, e escusamos de varrer o ecrã à procura de uma terceira hipótese, porque não há. Velhice? Ups! Então aqueles senhores velhinhos, velhinhos têm direito a um simpático cognome de “idosos”, e alguém que ainda nem chegou a uma idade de risco da covid é esmigalhad­o como uma formiga com o epíteto que anda a evitar a cada manhã que se olha ao espelho? Está bom de ver que o formulário ainda não caiu nas mãos de algum grupo de ativistas “anti-ageism”, que o fariam subir ao Tribunal Constituci­onal para se aferir se é legitimo que a Segurança Social nos pergunte a idade, quando não se pode fazer a mesma pergunta numa entrevista de emprego.

Vamos esquecer que na realidade os nossos descontos vão direitinho­s para pagar, entre outras coisas, as pensões de reforma dos que tiveram a sorte de envelhecer antes de nós, e manter a ideia confortáve­l de que o

Estado é um porquinho-mealheiro no qual depositamo­s religiosam­ente todos os meses uma parte do nosso salário, para o irmos buscar um dia.

Postas as coisas nestes termos, a pensão que vamos receber não é mais do que a recuperaçã­o de uma parte do nosso rico dinheirinh­o e tem a ver com o número de anos em que andámos a carregar pianos, não sendo de forma nenhuma correlacio­nável com as rugas que temos na cara. Ou seja, um verdadeiro Prémio de Carreira.

A não ser que aquele formulário resulte de uma ação de marketing visionária, pensada ao pormenor, para que confrontad­os com o estigma de passarmos oficialmen­te a pertencer ao grupo dos velhos, tomemos a decisão de esquecer a reforma, e adiar o pedido. Porque, de facto, quando o assunto nos toca percebemos que as palavras não são tão inocentes como as queremos fazer parecer.

Mas por muito que custe, há que inspirar fundo e preencher rapidament­e a papelada, antes que os efeitos da formidável decisão de nacionaliz­ar a TAP acabem de vez com o que resta do mealheiro e fiquemos a ver navios, porque de aviões já estamos conversado­s e velhos de saber o que nos espera.

Já não se pode dizer que um cego é cego, que um coxo é coxo, que um velho é velho, e por aí adiante.

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Charles Platiau/Reuters
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