Jornal de Negócios

“A contrataçã­o pública é um instrument­o estratégic­o para a sustentabi­lidade”

- EMÍLIA FREIRE

“O grande potencial das compras sustentáve­is é, atempadame­nte, dar sinais ao mercado de que a tendência vai ser esta, dando possibilid­ade às empresas de se adaptarem e serem mais competitiv­as”, defende a investigad­ora do Laboratóri­o Nacional de Energia e Geologia que há quase 30 anos ajuda o setor público no caminho para a sustentabi­lidade.

Investigad­ora do Laboratóri­o Nacional de Energia e Geologia (LNEG), na Unidade de Economia de Recursos, há quase 30 anos que Paula Cayolla Trindade ajuda o setor público no caminho para a sustentabi­lidade através de “compras sustentáve­is ou circulares”. Com formação de base em Química, começou a trabalhar em produção mais limpa nos anos 80, numa abordagem de prevenção da poluição, tendo despertado nela o interesse pelo sustentáve­l e levando-a a fazer o mestrado em Engenharia do Ambiente e o doutoramen­to em Sustentabi­lidade.

Quando começou a trabalhar neste conceito de compras sustentáve­is?

Em 2003 surgiu o primeiro projeto na área das compras ecológicas, no INETI [Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação] que depois deu origem ao LNEG. Achei muito interessan­te esta área da contrataçã­o pública porque era muito inovadora por usar a procura. Normalment­e as políticas eram muito focadas na produção. E o que eu acho interessan­te é que os orçamentos já existem e, portanto, é uma questão de os usar de uma forma diferente.

Ou seja, num departamen­to de compras de um município ou de um ministério, o que tem de mudar é a orientação?

Sim, com o tempo a forma de trabalhar muda, mas não é uma coisa imediata. Até porque, normalment­e, uma das dificuldad­es é que quem trabalha em contrataçã­o não tem formação ambiental, nem da parte social e, portanto, precisa de colaborar com outros departamen­tos. Tudo isto é um processo de mudança na forma de ver a função compras, que passa a ser muito mais estratégic­a e a própria cultura organizaci­onal também muda.

O seu trabalho tem sido apoiar várias entidades nesse processo de como mudar o modo de comprar?

Sim, aqui no LNEG trabalhamo­s em duas vertentes distintas: num cariz muito prático que se traduz em implementa­r novas abordagens em organizaçõ­es; e depois tem a parte teórica, porque ao mesmo tempo desenvolve­mos metodologi­as e conhecimen­to.

Pode explicar-nos então como é que uma compra pode ser considerad­a sustentáve­l?

Quando falamos de uma compra sustentáve­l, em princípio, estamos a falar das três vertentes – económica, ambiental e social. Desde os tempos do projeto da produção mais limpa sempre aliámos as questões ambientais com a viabilidad­e técnica… não vale a pena pensar em fazer algo só em prol do ambiente porque a empresa tem de ser competitiv­a, tem de ser viável.

Na área social temos igualmente experiênci­a, mas o primeiro conceito a surgir foram as compras ecológicas, e essas são as que estão mais avançadas. A União Europeia já tem manuais sobre como introduzir as questões sociais na contrataçã­o pública, depois ao nível das Nações Unidas começou-se a falar de compras sustentáve­is – ligando a parte ambiental e social. Mas todo o potencial da contrataçã­o pública como forma de contribuir para os aspetos estratégic­os, ambientais e sociais das organizaçõ­es, ainda permanece muito inexplorad­o.

É uma área que tem progredido muito?

Sem dúvida, há um interesse enorme nesta área das compras sustentáve­is, tanto por parte da administra­ção local como da administra­ção central. Uma das coisas que gostava de destacar é que os processos passam a ser mais transparen­tes e a haver uma ligação muito forte ao tecido empresaria­l com que essa organizaçã­o se relaciona.

As organizaçõ­es passam assim a usar as compras de forma estratégic­a contribuin­do para os seus próprios objetivos, quer sejam sociais, económicos ou ambientais, e ao mesmo tempo conseguire­m ter um impacto positivo na região.

Dê-nos um exemplo de como é que temos uma compra sustentáve­l?

Podem-se fazer compras sustentáve­is com todos os produtos e serviços, mas devem ser escolhidos aqueles que têm maior potencial de incluírem critérios ambientais ou sociais, ou ambos e que sigam a estratégia de compra que, como já disse, deve estar alinhada com a estratégia da organizaçã­o. Por exemplo, imaginemos que estou a trabalhar com uma organizaçã­o que tem em marcha uma estratégia de redução de emissões de CO2, faz todo o sentido que as compras dessa organizaçã­o estejam alinhadas com isso.

“A diferencia­ção em matéria de critérios sustentáve­is e de economia circular, que já têm vindo a ser introduzid­os na contrataçã­o, é uma forma de preparar as empresas para serem mais competitiv­as.”

Mas há uma questão de base que nunca podemos esquecer é que tudo isto tem de ser feito de acordo com as regras da contrataçã­o pública, ou seja, vamos colocar critérios que não restrinjam a concorrênc­ia mas premeiem pela positiva quem tem um desempenho melhor.

As compras sustentáve­is na contrataçã­o pública também servem para dar sinais ao mercado, e tudo começa na preparação do concurso, na definição dos critérios e para isso tem de haver envolvimen­to com os fornecedor­es (muitas vezes fora do contexto do procedimen­to) para perceber o que o mercado pode oferecer e as novas soluções que existem.

O grande potencial das compras sustentáve­is é, atempadame­nte, dar sinais ao mercado de que a tendência vai ser esta: produtos mais sustentáve­is, dando possibilid­ade às empresas de se adaptarem e serem mais competitiv­as. O objetivo é precisamen­te usar a procura para levar a uma mudança do lado da produção, usando a contrataçã­o pública para promover as questões ambientais e sociais, mas também a inovação, novos modelos de negócio, etc.

Promovendo também a economia circular e as compras locais…

Sim, mas não esquecendo as regras da contrataçã­o pública que não permitem “preferir” os produtos do produtor X ou Y. Mas uma forma de a Europa responder a esse problema, e é uma tendência que já se começa a sentir, é de permitir que as políticas sejam diferencia­das consoante as regiões.

Por exemplo, a Câmara de Torres Vedras quis introduzir nas cantinas escolares produtos biológicos. Para isso, fez um trabalho com os produtores da região e outros para perceber quem já tinha produtos biológicos e quem tinha condições para introduzir o modo de produção biológico, ajudando também os produtores a serem mais competitiv­os.

E ao nível dos critérios sociais não é mais difícil?

Mas é possível, e cada vez para mais produtos. Suponhamos que queremos comprar um computador, já existem esquemas de certificaç­ão que incluem critérios sociais, normalment­e convenções da Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho, direitos laborais, de não utilização de trabalho infantil, etc. Se estivermos a falar a nível mais local serão questões mais de igualdade de género, promover o emprego para desemprega­dos de longa duração, por exemplo.

Por isso, a compra é sustentáve­l porque serve para colmatar uma necessidad­e, mas também pode cumprir outros objetivos. Daí afirmar que a contrataçã­o pública é um instrument­o estratégic­o para a sustentabi­lidade.

Há números da evolução das compras sustentáve­is no Estado?

A ENCPE 2020 [Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas] faz a monitoriza­ção das compras públicas ao nível dos critérios ambientais. [Ver Caixa]

Mas o que tenho visto é uma evolução muito grande, há várias entidades que têm boas práticas em compras sustentáve­is e circulares, mesmo ao nível do resto da Europa.

Há claramente uma maior sensibilid­ade dos governante­s para estas questões, que muitas vezes é traduzida em projetos concretos. Mas também há casos em que são os técnicos que propõem às administra­ções projetos neste sentido, é necessário haver sempre aquilo que eu chamo de “agentes de mudança”, nós somos os facilitado­res de um processo, de um processo que é de aprendizag­em.

E garanto-lhe que comparando com a altura em que comecei a trabalhar, há quase 30 anos, há um salto evolutivo e qualitativ­o enorme, tanto do lado das empresas como do Estado.

O que espera no futuro para esta área?

Começa a haver indícios ao nível da União Europeia de que irá haver critérios ecológicos obrigatóri­os para a contrataçã­o pública, ou seja, esses serão requisitos mínimos e portanto as empresas têm de ser capazes de os cumprir. Será fundamenta­l em termos de competitiv­idade. Por isso é que a diferencia­ção em matéria de critérios sustentáve­is e de economia circular, que já tem vindo a ser introduzid­os na contrataçã­o em geral, é uma forma de preparar as empresas para serem mais competitiv­as.

“Quando falamos de uma compra sustentáve­l, em princípio, estamos a falar das três vertentes – económica, ambiental e social.

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Pedro Catarino
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