“A contratação pública é um instrumento estratégico para a sustentabilidade”
“O grande potencial das compras sustentáveis é, atempadamente, dar sinais ao mercado de que a tendência vai ser esta, dando possibilidade às empresas de se adaptarem e serem mais competitivas”, defende a investigadora do Laboratório Nacional de Energia e Geologia que há quase 30 anos ajuda o setor público no caminho para a sustentabilidade.
Investigadora do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), na Unidade de Economia de Recursos, há quase 30 anos que Paula Cayolla Trindade ajuda o setor público no caminho para a sustentabilidade através de “compras sustentáveis ou circulares”. Com formação de base em Química, começou a trabalhar em produção mais limpa nos anos 80, numa abordagem de prevenção da poluição, tendo despertado nela o interesse pelo sustentável e levando-a a fazer o mestrado em Engenharia do Ambiente e o doutoramento em Sustentabilidade.
Quando começou a trabalhar neste conceito de compras sustentáveis?
Em 2003 surgiu o primeiro projeto na área das compras ecológicas, no INETI [Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação] que depois deu origem ao LNEG. Achei muito interessante esta área da contratação pública porque era muito inovadora por usar a procura. Normalmente as políticas eram muito focadas na produção. E o que eu acho interessante é que os orçamentos já existem e, portanto, é uma questão de os usar de uma forma diferente.
Ou seja, num departamento de compras de um município ou de um ministério, o que tem de mudar é a orientação?
Sim, com o tempo a forma de trabalhar muda, mas não é uma coisa imediata. Até porque, normalmente, uma das dificuldades é que quem trabalha em contratação não tem formação ambiental, nem da parte social e, portanto, precisa de colaborar com outros departamentos. Tudo isto é um processo de mudança na forma de ver a função compras, que passa a ser muito mais estratégica e a própria cultura organizacional também muda.
O seu trabalho tem sido apoiar várias entidades nesse processo de como mudar o modo de comprar?
Sim, aqui no LNEG trabalhamos em duas vertentes distintas: num cariz muito prático que se traduz em implementar novas abordagens em organizações; e depois tem a parte teórica, porque ao mesmo tempo desenvolvemos metodologias e conhecimento.
Pode explicar-nos então como é que uma compra pode ser considerada sustentável?
Quando falamos de uma compra sustentável, em princípio, estamos a falar das três vertentes – económica, ambiental e social. Desde os tempos do projeto da produção mais limpa sempre aliámos as questões ambientais com a viabilidade técnica… não vale a pena pensar em fazer algo só em prol do ambiente porque a empresa tem de ser competitiva, tem de ser viável.
Na área social temos igualmente experiência, mas o primeiro conceito a surgir foram as compras ecológicas, e essas são as que estão mais avançadas. A União Europeia já tem manuais sobre como introduzir as questões sociais na contratação pública, depois ao nível das Nações Unidas começou-se a falar de compras sustentáveis – ligando a parte ambiental e social. Mas todo o potencial da contratação pública como forma de contribuir para os aspetos estratégicos, ambientais e sociais das organizações, ainda permanece muito inexplorado.
É uma área que tem progredido muito?
Sem dúvida, há um interesse enorme nesta área das compras sustentáveis, tanto por parte da administração local como da administração central. Uma das coisas que gostava de destacar é que os processos passam a ser mais transparentes e a haver uma ligação muito forte ao tecido empresarial com que essa organização se relaciona.
As organizações passam assim a usar as compras de forma estratégica contribuindo para os seus próprios objetivos, quer sejam sociais, económicos ou ambientais, e ao mesmo tempo conseguirem ter um impacto positivo na região.
Dê-nos um exemplo de como é que temos uma compra sustentável?
Podem-se fazer compras sustentáveis com todos os produtos e serviços, mas devem ser escolhidos aqueles que têm maior potencial de incluírem critérios ambientais ou sociais, ou ambos e que sigam a estratégia de compra que, como já disse, deve estar alinhada com a estratégia da organização. Por exemplo, imaginemos que estou a trabalhar com uma organização que tem em marcha uma estratégia de redução de emissões de CO2, faz todo o sentido que as compras dessa organização estejam alinhadas com isso.
“A diferenciação em matéria de critérios sustentáveis e de economia circular, que já têm vindo a ser introduzidos na contratação, é uma forma de preparar as empresas para serem mais competitivas.”
Mas há uma questão de base que nunca podemos esquecer é que tudo isto tem de ser feito de acordo com as regras da contratação pública, ou seja, vamos colocar critérios que não restrinjam a concorrência mas premeiem pela positiva quem tem um desempenho melhor.
As compras sustentáveis na contratação pública também servem para dar sinais ao mercado, e tudo começa na preparação do concurso, na definição dos critérios e para isso tem de haver envolvimento com os fornecedores (muitas vezes fora do contexto do procedimento) para perceber o que o mercado pode oferecer e as novas soluções que existem.
O grande potencial das compras sustentáveis é, atempadamente, dar sinais ao mercado de que a tendência vai ser esta: produtos mais sustentáveis, dando possibilidade às empresas de se adaptarem e serem mais competitivas. O objetivo é precisamente usar a procura para levar a uma mudança do lado da produção, usando a contratação pública para promover as questões ambientais e sociais, mas também a inovação, novos modelos de negócio, etc.
Promovendo também a economia circular e as compras locais…
Sim, mas não esquecendo as regras da contratação pública que não permitem “preferir” os produtos do produtor X ou Y. Mas uma forma de a Europa responder a esse problema, e é uma tendência que já se começa a sentir, é de permitir que as políticas sejam diferenciadas consoante as regiões.
Por exemplo, a Câmara de Torres Vedras quis introduzir nas cantinas escolares produtos biológicos. Para isso, fez um trabalho com os produtores da região e outros para perceber quem já tinha produtos biológicos e quem tinha condições para introduzir o modo de produção biológico, ajudando também os produtores a serem mais competitivos.
E ao nível dos critérios sociais não é mais difícil?
Mas é possível, e cada vez para mais produtos. Suponhamos que queremos comprar um computador, já existem esquemas de certificação que incluem critérios sociais, normalmente convenções da Organização Internacional do Trabalho, direitos laborais, de não utilização de trabalho infantil, etc. Se estivermos a falar a nível mais local serão questões mais de igualdade de género, promover o emprego para desempregados de longa duração, por exemplo.
Por isso, a compra é sustentável porque serve para colmatar uma necessidade, mas também pode cumprir outros objetivos. Daí afirmar que a contratação pública é um instrumento estratégico para a sustentabilidade.
Há números da evolução das compras sustentáveis no Estado?
A ENCPE 2020 [Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas] faz a monitorização das compras públicas ao nível dos critérios ambientais. [Ver Caixa]
Mas o que tenho visto é uma evolução muito grande, há várias entidades que têm boas práticas em compras sustentáveis e circulares, mesmo ao nível do resto da Europa.
Há claramente uma maior sensibilidade dos governantes para estas questões, que muitas vezes é traduzida em projetos concretos. Mas também há casos em que são os técnicos que propõem às administrações projetos neste sentido, é necessário haver sempre aquilo que eu chamo de “agentes de mudança”, nós somos os facilitadores de um processo, de um processo que é de aprendizagem.
E garanto-lhe que comparando com a altura em que comecei a trabalhar, há quase 30 anos, há um salto evolutivo e qualitativo enorme, tanto do lado das empresas como do Estado.
O que espera no futuro para esta área?
Começa a haver indícios ao nível da União Europeia de que irá haver critérios ecológicos obrigatórios para a contratação pública, ou seja, esses serão requisitos mínimos e portanto as empresas têm de ser capazes de os cumprir. Será fundamental em termos de competitividade. Por isso é que a diferenciação em matéria de critérios sustentáveis e de economia circular, que já tem vindo a ser introduzidos na contratação em geral, é uma forma de preparar as empresas para serem mais competitivas.
“Quando falamos de uma compra sustentável, em princípio, estamos a falar das três vertentes – económica, ambiental e social.