MARIA JOSÉ NÚNCIO
O desconfinamento trouxe uma espécie de desapontamento
Há um antes e um depois da covid-19. Mas, mesmo que quiséssemos, já nenhum de nós seria capaz de reproduzir com exatidão o que sentiu e como viveu os primeiros tempos de confinamento. O tempo é o maior dos filtros, alerta a socióloga Maria José Núncio, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Em abril fez um apelo nas redes sociais e viu a sua caixa de e-mail transformar-se numa espécie de confessionário. Recebeu 135 testemunhos sobre o lado privado da pandemia: diários, textos, frases soltas, desabafos que mostram como o vírus veio pôr as nossas vidas de pernas para o ar e mexer com os nossos valores. Os comportamentos vão mudar, acredita, mas é cedo para definir tendências.
Tive profissionais de saúde a dizerem-me que era insuportável ver os testemunhos dos colegas em Itália e Espanha. Não se queriam imaginar a ter de decidir a quem seria dada a oportunidade de viver e quem iria morrer.
Confessou-me ainda antes desta entrevista que embirra com a expressão “novo normal”. Porquê?
Porque querer transformar a atual situação numa “normalidade” é um disparate, uma precipitação. Temos de ter a capacidade de manter algum distanciamento para perceber o que será passageiro e o que irá gerar uma tendência de comportamento — e isso depende de uma série de variáveis. Depende da evolução da situação, depende do tempo que a pandemia durar... A covid-19 veio mexer muito com o nosso modo de estar, com os nossos valores, pôs a nossa vida de pernas para o ar. Mesmo do ponto de vista individual, encarar o momento como uma “nova normalidade” não me parece sequer saudável: para prevenir a dor daquilo que é imprevisível, não podemos também entrar na dor da resignação. Corremos até o risco de converter isto numa espécie de eutanásia social para as pessoas mais velhas. Recuemos a março, às primeiras infeções por covid-19 e à altura em que os portugueses se fecharam em casa, alguns mesmo antes de o Presidente da República declarar o estado de emergência. O que é que a impeliu a lançar um apelo a pedir que as pessoas partilhassem consigo testemunhos do seu quotidiano?
As vivências privadas são a área da sociologia que mais me interessa. Queria perceber como é que as pessoas estavam a viver a pandemia, o confinamento, uma situação que era a todos os títulos muito nova, do ponto de vista emocional e relacional. E tive logo a noção de que se lhes perguntasse depois iria haver muitos filtros a interferir. Porque uma coisa é estar a viver a situação e relatá-la, outra é olhar para trás e analisá-la, interpretá-la. Entretanto, apagamos memórias, as opiniões dos outros influenciam-nos, no que é que parece menos bem, ou parece mal, no que é que devemos dizer ou não dizer. Usou as redes sociais para passar a palavra. Que indicações deu exatamente?
Nenhuma. Pedi às pessoas para me escreverem o que quer que fosse sobre as suas próprias vivências do confinamento, sob a forma que entendessem, anonimamente, sem filtros, sem constrangimentos. Algumas passaram a enviar-me um diário da semana, com a descrição das rotinas, outras escreveram textos emocionais, em tom de desabafo... Recebi registos soltos, poemas, trechos de meia dúzia de linhas, alguns que diziam muito. Confrontadas com a caneta e o papel, algumas pessoas davam por si a libertar tensões que muitas vezes nem queriam reconhecer. Recebi testemunhos que pareciam ter sido escritos à pressa num papel, de forma impulsiva, com palavras que pareciam vir mesmo lá do fundo... Quantas pessoas lhe responderam?
Até 28 de abril, dia em que se anunciou o fim do estado de emergência, tenho 135 testemunhos. Depois recebi muitos mais, mas ainda não sei se vão entrar na investigação. Estamos a falar de um grupo heterogéneo nas idades e até no sexo, embora haja mais mulheres do que homens, e que conta com pessoas que estavam totalmente confinadas e em teletrabalho, outras que estavam a trabalhar em regime misto, ou até a tempo inteiro, caso dos profissionais de saúde. Só em termos socioeconómicos não tenho essa diversidade: são todas pessoas da dita classe média. Numa primeira análise, o que é que lhe saltou mais à vista?
As questões da vivência do tempo. Percebemos que andávamos todos a viver a um ritmo muito, muito acelerado. Essa questão foi transversal. As pessoas tinham noção de que todo o seu tempo estava ocupado, de repente viram-se em casa, começaram a perceber que lhes sobrava tempo... e isto gerou uma coisa muito interessante: testemunhos dicotomizados. Achei que iria encontrar muito um discurso mais ponderado, expectante, talvez porque essa era a minha postura, mas não, encontrei um discurso profundamente bipolarizado. O mundo dividiu-se entre otimistas e pessimistas.
Sim, havia pessoas a dizer-me que a pandemia foi a melhor coisa que lhes podia ter página 06
acontecido, no sentido de lhes ter permitido reencontrarem-se consigo próprias, com o tempo e com as pessoas à sua volta. Pessoas decididas a repensar a sua vida. Mas também encontrei outro discurso, muito negativo, muito pessimista, a considerar a pandemia como o fim dos tempos ou, pelo menos, dos seus tempos. Essa bipolarização era visível, independentemente do tema?
Sim, as pessoas mostravam-se muito otimistas, ou muito pessimistas, em relação a tudo. Eu escolhi algumas dimensões de análise, as vivências do quotidiano, o modo como se viveu o tempo, as rotinas, mas também as relações com os outros, com a família, com os amigos. E aqui o discurso otimista foi curiosíssimo. As pessoas referiam como a pandemia lhes permitiu estar em contacto com pessoas com quem não falavam habitualmente. Retomaram-se contactos familiares, organizaram-se grupos de WhatsApp para conversas de grupo... Existia a preocupação com o outro. Mas, claro, também houve quem me dissesse que a comunicação à distância não era suficiente. Falta o toque, falta o abraço, falta o beijinho, falta o olhar, falta a presença física do outro, nada iguala isso. Como é que olhavam para o futuro?
Também nessa dimensão, o discurso era de extremos. Havia quem acreditasse que a pandemia iria mudar a Humanidade para melhor, alterar os modos de vida, tornar-nos mais conscientes do que realmente tem valor. Ou seja, as pessoas apercebiam-se de que a covid-19 tinha vindo alterar o seu quadro de valores e depois extrapolavam: vamos todos tornar-nos ecologicamente mais conscientes, do ponto de vista humano também mais conscientes do outro, mais empáticos, tudo isto. E, aqui, encontrei claramente mais otimistas. Mas também recebi testemunhos que temiam que a pandemia trouxesse à tona o pior da Humanidade, com o instinto de sobrevivência a fazer valer a lei do mais forte, a acirrar a competitividade e a aumentar a indiferença em relação ao outro. Numa altura em que era preciso sobretudo proteger o outro, os mais velhos, os doentes, as pessoas de risco.
Isso é outro aspeto curioso: entre os mais velhos, muitos disseram-me que ganharam consciência da idade com esta situação. Tinham uma vida ocupada, iam jantar fora, iam a espetáculos, não se sentiam velhos, não tinham qualquer razão para se sentirem em risco e, de repente, de um dia para o outro, disseram-lhes: isola-te, fecha-te, confina-te, porque a partir de agora estás no grupo dos velhos. E este confronto foi extraordinariamente difícil para algumas pessoas. Viram-se obrigadas a interiorizar uma identidade que era de facto dissonante com a autoimagem que tinham. “De um dia para o outro” tudo mudou. Mas esse “timing” não foi igual para todos, ou foi?
Uma pessoa disse-me “não sei se estou a sonhar agora ou se antes é que foi um sonho”. É como se tivesse uma rutura de tal forma violenta que surge quase como uma rutura com a própria realidade. Mas, de facto, penso que esse “de um dia para o outro” foi sentido pelos mais velhos só depois, com o decretar do estado de emergência. Nessa altura, os filhos queixavam-se muito dos pais, houve uma clara inversão de papéis.
Sim, eram os filhos que tinham de dizer aos pais que não podiam sair, que havia risco, que havia perigo. A população mais velha foi no início a mais resistente. Muitos mentiam aos filhos, o que é engraçadíssimo. A postura era muito esta: eu já vivi estes anos todos, aquilo que quero fazer com os anos que me restam, sou eu que decido! Não lhes fazia sentido abdicar da relação com netos, por exemplo, para se protegerem de uma doença que alguém lhes dizia que existia. Porque no início, era isto que as pessoas pensavam, não havia uma perceção real do risco. Mas isso alterou-se rapidamente.
Houve uma evolução muito grande e, curiosamente, nos testemunhos que me descreveram essa trajetória, encontrei um paralelismo enorme com as situações de luto. No início, a perceção era de uma certa irrealidade, as pessoas estavam em negação e depois passaram pela revolta, com momentos de raiva, ou de tristeza, até com o aproximar do fim do estado de emergência chegarem a um ponto de aceitação. E o que é que veio tornar o perigo mais real? Foram os testemunhos, as imagens que chegavam de Itália?
As imagens foram muito perturbadoras. E a questão das escolhas dos médicos foi também muito referida. Tive profissionais de saúde a dizerem-me que era insuportável para eles ver os testemunhos dos colegas em Itália e Espanha. Não se queriam imaginar na situação de ter de decidir a quem seria dada a oportunidade de viver e quem iria morrer. Essa questão foi aliás também altamente perturbadora para os mais velhos. Ao mesmo tempo que se tornava claro que a mortalidade era maior nas faixas etárias mais avançadas, pensavam: “Se tiverem de escolher, com esta idade, não me irão escolher a mim...”. A proximidade veio tornar tudo mais real.
Sim, na China era um problema muito longínquo, depois o vírus chegou a Itália e passou já a existir algum medo, a seguir Espanha, Portugal, o próprio concelho, até que às tantas já era alguém próximo, ou conhecido de alguém amigo... E quando finalmente as pessoas interiorizaram o que estava a acontecer, de repente a perceção do risco tornou-se muito mais aguda, porque ninguém sabia onde estava o inimigo. E havia decisões a tomar, apesar das dúvidas.
Sim, a questão dos lares foi especialmente impactante. As pessoas falavam
-me do peso de deixar os familiares no lar. À mãe de um deficiente profundo, foi-lhe pedido que levasse o filho para casa. É profissional de saúde há muitos anos e disse-me que foi a primeira vez que sentiu que tinha de optar entre a família e o país — repare que ela nem sequer diz a profissão, mas o país. Viveram-se momentos de ansiedade generalizada.
Sim. Muitas pessoas assumiram depois que, a determinada altura, para se protegerem, deixaram de ver notícias, nomeadamente em canais de televisão. Isto, apesar de toda a propaganda, a garantir que Portugal estava preparado, que tivera tempo para aprender com os erros dos outros, etc. Não tenho nada que comprove isto, mas parece-me que houve uma preocupação claramente política de salvaguardar o SNS, nomeadamente mantendo muitas situações no domicílio, o que obviamente, não sendo eu epidemiologista, iria sempre aumentar o risco na comunidade. Os efeitos do confinamento na economia foram desde o início uma preocupação, ou só mais tarde se pôs a questão?
A geração entre os 40 e os 50 anos foi talvez a que mais me falou da dualidade entre a salvaguarda da vida e da saúde e as questões da economia. Algumas pessoas estavam em lay-off, ou tinham familiares nessa situação, e temiam o despedimento. Em declarações ao Expresso, alertou logo nessa altura para o facto de as mulheres estarem a pagar a fatura da pandemia.
Claramente. Não sei se já há números, mas não terá havido muitos homens a pedir o apoio excecional à família. Dos meus testemunhos, foram só mulheres. O que é curioso, porque estamos a falar de uma geração em que já seria previsível haver uma maior repartição e divisão das tarefas e papéis. Mas, ao mesmo tempo não surpreende, porque segue uma mesma linha de secundarização do trabalho da mulher, que é ainda muito visível. Continua a ser na ordem dos 80% a percentagem de mulheres que ficam em casa quando os filhos estão doentes, mesmo quando ganham mais ou até têm profissões socialmente mais prestigiadas. Isto tem pura e simplesmente que ver com questões de mentalidade. Nenhuma mulher referiu ter posto sequer a hipótese de não ser ela a ficar em casa com os filhos — o que é altamente preocupante.
Nenhuma mulher referiu ter posto sequer a hipótese de não ser ela a ficar em casa com os filhos - o que é altamente preocupante.
Como reagiram as entidades patronais?
Houve alguma resistência e quatro mulheres foram literalmente ameaçadas. Disseram-lhes que era uma opção sua, mas... arriscavam uma mudança de departamento ou de divisão, poderiam ser chamadas em qualquer altura para fazer outro tipo de ser
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viço de maior risco, etc. E só num dos casos está em causa uma empresa privada. Nos outros, estamos a falar de organismos públicos ou organizações do terceiro setor, algumas bastante grandes. A pandemia veio aumentar a desigualdade de género, ou só dar maior visibilidade ao problema?
Evidenciou a desigualdade e eventualmente potenciou — e vai continuar a potenciar, porque se olharmos para os números da pobreza, os mais velhos, as mulheres e as crianças são tradicionalmente os mais afetados. Quando há uma situação de crise de emprego, quem são as primeiras a sair? Elas. Durante as primeiras semanas de confinamento e teletrabalho, a palavra “caos” foi das mais ouvidas.
No início, foi tudo até um pouco romantizado: “Olha que bom, agora estamos todos juntos em casa...”. Mas de repente a pressão do trabalho aumentou, a vida em casa tornou-se caótica, deixou de ser possível separar a esfera profissional da esfera pessoal, e houve de facto uma sensação de grande perturbação — o que a mim me deixou triste, porque eu sou uma grande defensora do teletrabalho. O que me parece que aconteceu foi que o confinamento trouxe só a parte negativa. Porque um dos argumentos contra o teletrabalho é a dificuldade em separar as esferas, o que neste caso era impossível. E outro é o isolamento, os efeitos que o teletrabalho pode ter nas relações sociais e até na saúde das pessoas. E esse lado de sociabilidade ficou impedido por todas as vias, quer relativamente aos colegas de trabalho, quer relativamente à própria vida. As pessoas não podiam sair de casa. Em rigor, foi trabalho absolutamente confinado. As relações tornaram-se mais tensas?
Confesso que não estava à espera de encontrar tantas referências a tensões profissionais, quer com chefias, quer com colegas, e tive várias pessoas a queixarem-se disso. Recebiam e-mails às dez da noite a marcar reuniões para as 9h00 do dia seguinte. O teletrabalho não pressupõe estar ao serviço 24 sobre 24 horas. E entre os casais?
Tenho uns cinco ou seis testemunhos que me falam da relação de casal e todos dizem realmente que surgiram tensões, no início. Em alguns casos foram limadas, num deles a situação agudizou-se e decidiram avançar com a separação. Mas, lá está, era uma questão que já estava latente. Essa pessoa revela até que o confinamento teve o lado positivo de a levar a tomar uma decisão. Como reagiram as crianças e quais eram as preocupações dos pais?
Lembro-me de uma pessoa com um filho de três ou quatro anos que me dizia ter receio que esta ideia da não aproximação ao outro gerasse no miúdo comportamentos quase fóbicos. Depois, da parte dos profissionais de saúde, como proteger os filhos em relação à doença era a questão mais premente. Mas, no geral, a preocupação mais referida era de como normalizar, como explicar o que se estava a passar às crianças sem criar pânicos, reconhecendo que isso era muito difícil, sabendo eles que não eram a única fonte de informação dos filhos... Uma coisa interessante é que, para a geração que tem filhos adolescentes, a vivência do confinamento foi uma surpresa, no sentido de ter sido mais fácil do que aquilo que se pensava. A maioria dos adolescentes viveu isto de uma forma muito tranquila, o que tem que ver com alguma habituação que esta geração tem da distância. Isso gerou até uma espécie de redenção das redes sociais, antes demonizadas pelos pais, que passaram a dizer: benditas redes sociais! Benditos telemóveis! Houve um estreitar de relações?
O confinamento veio permitir um maior conhecimento entre pais e filhos, nomeadamente adolescentes. Uma das pessoas disse-me: “Sinto que conheci o meu filho.” Lá está, andamos sempre correr, corremos muito... Na fase inicial, acredito até que o confinamento tenha sabido muito bem a algumas pessoas. Obviamente, a todos nos sabe bem de repente abrandar o ritmo, de repente estarmos com os nossos, se calhar num sítio mais tranquilo. Agora, uma coisa é dizerem-nos que é por uns dias, outra coisa é percebermos que é por muito tempo. Repete que é cedo para definir tendências, mas em relação ao teletrabalho, muitas pessoas e até empresas dizem ter vindo para ficar.
O teletrabalho é muito pouco consensual, quer do ponto de vista teórico, quer empírico. Se formos ler toda a investigação, provavelmente chegamos à conclusão de que 50% das pessoas defende o teletrabalho e os outros 50% são opositores. Pessoalmente, acho que é possível trabalhar a partir de casa — desde que se criem as condições para isso. E sim, se calhar muitas pessoas e muitos serviços que não tinham colocado essa hipótese de repente poderão começar a colocá-la. Mas o meu receio é que se faça isso continuando no registo do improviso. E aí, os aspetos negativos vão persistir.
Tenho um testemunho interessantíssimo que mostra como todos fomos “atirados” para esta situação de um momento para o outro. A pessoa é assistente social e foi almoçar com a indicação de que às 15h00 iam todos para casa. A única coisa que fez foi pegar em processos que achou que ia necessitar, metê-los dentro do carro e levá-los para casa. Faz uma analogia engraçada, explica que foi como se tivesse havido um assalto e todos tivessem tido de fugir, teve essa sensação de fuga... Depois chegou a casa, olhou para os processos e começou a pensar que se calhar o que tinha feito era eticamente reprovável. Aqueles eram processos absolutamente confidenciais, nunca deviam ter saído de onde estavam. Mas, ao mesmo tempo, a pessoa sabia que não conseguiria trabalhar sem os ter em casa. Todos fomos obrigados a improvisar. É por isso que diz que também não se pode falar de ensino à distância?
É preciso alguma cautela com os conceitos que utilizamos. O que tivemos foram professores que não foram formados para ensinar à distância a ter de ensinar à distância e alunos que não se inscreveram em cursos de ensino à distância a ser ensinados à distância. Andámos todos muito perdidos, mas nos testemunhos que recebi, mesmo quando os pais se queixavam da sobrecarga de tarefas, sobre os mais novos, prevalecia a ideia de que todos estavam a fazer o possível. Recebeu testemunhos de professores também?
Sim, de professores do ensino básico, secundário e do ensino especial. E muitos testemunhos diziam que sentiam que uma boa parte do seu trabalho não era tanto o ensinar, mas mais apoiar os alunos... Tive pelo menos três professoras que me disseram que tinham dado o número de telemóvel a alunos e que estavam sempre a receber mensagens não relacionadas com a matéria, mas que tinham subjacente outro tipo de inseguranças, medos ou mesmo outro tipo de situações, às vezes conflituais, entre a família.
Muitas pessoas assumiram que, a determinada altura, para se protegerem, deixaram de ver notícias, nomeadamente em canais de televisão.
Tinham de estar lá, para não os perder.
É curioso, foi mesmo essa a expressão. Porque a noção do risco de perder estes miúdos é muito grande. Aliás, essa é outra questão na qual se calhar vamos ter de pensar futuramente, o abandono escolar. Os professores têm a noção de que o risco de abandono se agudizou, que é agora um risco muito real e que as estratégias são manifestamente insuficientes. Se o ensino não presencial voltar e se prolongar no próximo ano, aí sim, o abandono escolar vai ser uma tendência. Continua a receber testemunhos?
Sim, sobretudo de pessoas que me dizem que a situação lhes está a gerar mais inseguranças do que aquelas que antecipavam. Também porque havia um pouco aquela ideia...: “Eu agora vou cumprir o confinamento e depois isto tem um fim.” E, de repente, as pessoas perceberam que não, o que lhes criou uma série de inseguranças. E nem sequer estou a falar dos casos mais extremos, de quem não sabe se vai ter emprego ou não. Todos se interrogam: mas irei trabalhar em que moldes? E os miúdos, vão estudar em que registo? E como é que vamos confraternizar? Como é que vamos manter o lazer? E como é que vou organizar a minha vida? O desconfinamento trouxe uma espécie de desapontamento. Porque as pessoas continuaram com uma série de dúvidas, e já nem é em relação ao futuro longínquo, é em relação ao futuro próximo. E estas incertezas continuam a ser profundamente perturbadoras. Porque o medo está muito ligado à incerteza. Se calhar, não gostamos de dizer isto, temos medo de dizer que temos medo, mas temos medo. E temos medo no sentido em que isto é tudo muito novo. E porque tudo isto mexeu de tal maneira com o nosso modo de vida, com o que tomávamos como garantido... que pode, de facto, vir a mudar comportamentos. Em que sentido?
A covid-19 vai deixar marcas, em todas as gerações. É um fenómeno muito conhecido da psicologia social. Quando vivemos situações de grande crise, uma catástrofe, ou acidente, isso torna-se um marco nas nossas vidas. E esta pandemia vai ficar como um marco individual e coletivo. Vai haver um AC, de antes da covid, e um DC, para o depois da covid, como alguém disse. Mas, como comecei por dizer, é muito cedo para dizer em que sentido irá haver uma mudança de comportamentos. Podem acontecer muitas coisas. Também a nível global, o mundo está de certo modo em suspenso.
Já vivíamos num mundo que estava em grande tensão e que estava a tornar-se mais desigual. Portanto, se estamos a falar de um fenómeno que pode ainda potenciar estas desigualdades, que tipo de futuro é que vamos ter? Estamos a falar de uma crise que eu acho que só é comparável com uma situação de pós-guerra. E não temos um Plano Marshall. É um momento decisivo para a Europa.
É, e neste momento não temos uma União Europeia unida, há uma UE a várias vozes e quando a UE fala a uma só voz soa a voz da burocracia, o que é igualmente perigoso. As Nações Unidas... A Organização Mundial da Saúde sai profundamente desacreditada desta crise, toda a gestão da pandemia foi péssima, desastrosa. Podemos estar a assistir ao descrédito das grandes instituições, o que faz surgir grandes perigos, ou agudizar um conjunto de perigos que já existiam. Porque quer queiramos quer não, estas instituições ainda eram o grande referencial da democracia, da igualdade, dos direitos humanos. São estas instituições que sustentam aquilo que é o nosso modo de vida. Ou era. Se não forem capazes, de alguma maneira, de nos dar essa segurança, vão surgir pequenos nichos de resposta, os populismos, os extremismos, o discurso fácil do “soundbyte”, que é perfeitamente oco, mas que dá uma sensação de segurança e de certeza que as pessoas sentem que as respalda contra um conjunto de incertezas muito grande à volta. Esse é o grande perigo.