O estrangeiro
Gosto dos estrangeiros. Ora, num tempo em que a generalização anda pelas ruas da amargura, quero sussurrar ao ouvido do paciente leitor qual é o estrangeiro de que gosto. O turista, sendo como é – um mamífero em busca de sal e sol – tem a nossa condescendência e simpatia embrulhadas em consumo e IVA. Esse é o estrangeiro de que o Ministério das Finanças gosta. Eu gosto do estrangeiro que mora aqui. Gosto do estrangeiro, do homem e da mulher que estão sós, que não têm ninguém que lhes fale a língua e que vivem connosco. Gosto do americano de Beja, da francesa de Sesimbra, do dinamarquês de Aljezur, do zairense da Caparica. Aprendi a gostar deles, gostando da implacável alemã do meu primeiro emprego num hotel do Lobito. A acirrada disciplina que lhe faiscava nos olhos e trovejava na boca era a forma de pagar o amor ao Lobito, à restinga e ao mar tropical em que visitava sonho e liberdade. O estrangeiro é o que escolheu – mesmo quando parece que não escolheu – carregar a nossa cruz, o nosso céu, terra e mar, a nossa amargura e a nossa incomunicável alegria. O português que anda pelas ruas do Porto ou Lisboa pode muito bem chegar ao pé de um desses estrangeiros e dizer-lhes “I’m a stranger here myself”, como se fosse o herói autocomplacente de “Johnny Guitar”. Eis o português da treta e a piedosa conversa de café. O estrangeiro não quer ser “stranger”, quer é vaguear as noites para ouvir o fado de Portugal, e nele e por ele ser nosso irmão. O estrangeiro é o que se entrega, frágil, indefeso, à descoberta. Quer, em nós, descobrir-se a si mesmo.
O estrangeiro não tem rede – ou tem, quando muito, pouca rede. Honra-nos com essa desarmante vulnerabilidade. Se quiséssemos, poderíamos matar o estrangeiro, bater-lhe, dar-lhe um tiro, estrangulá-lo. Só um cobarde o faria, porque o estrangeiro que vem morar connosco é o que se nos confia, o que nos dá o seu amor antes de saber se o iremos amar.
O estrangeiro é português porque os portugueses, no seu melhor, sempre foram estrangeiros. Nunca ao verdadeiro português lhe bastou Portugal para ser o português que queria ser.
Nem preciso de chamar Camões como testemunha. O português que quer ser português vai ser Fernão Mendes Pinto para o oceano Pacífico, e ninguém foi mais português do que Wenceslau de Morais no Japão. E há mesmo formas cruéis de se ser português – eu não devia dizer isto nestes tempos de folclórica chantagem histórica, mas o português que quer ser português vai ser, a ferro e fogo, Afonso de Albuquerque em Ormuz. Ou vai plantar café em Angola, bater chapa na Alemanha, ser porteira em Paris ou padeiro de Manaus a Santa Catarina.
O português com ânsias de ser português quer mar e mar, quer ir sem saber se vai voltar. Fernando Pessoa cantou-se como o viajante que nunca saía do cais. Bastar-lhe o cais e ver partir os outros é uma forma de abstenção – que pena que ele tenha desistido de ser português. E é mentira, porque Fernando Pessoa se reinventou noutros nomes e, sendo quem era, foi também o engenheiro Álvaro de Campos, que andou em bolandas de Glasgow a Londres, como foi o latinista Ricardo Reis, que se baldeou para o Brasil, já para não falar dos vestígios adolescentes, que ele mesmo, menino Fernando ainda, deixou em Durban.
Em Portugal, não há nada mais português do que o estrangeiro à porta de sua casa, com um ridículo cão ao colo ou um preguiçoso gato a roçar-lhe a perna. De todas as solidões, esse estrangeiro doméstico escolheu para viver a poética solidão de Portugal. É o mais bonito elogio que nos podem fazer.
O estrangeiro é português porque os portugueses, no seu melhor, sempre foram estrangeiros. Nunca ao verdadeiro português lhe bastou Portugal para ser o português que queria ser.