Jornal de Negócios

“A União Europeia pode acabar por sair reforçada na sua unidade interna e no seu papel global.”

- FRANCISCO SEIXAS DA COSTA Embaixador

FRANCISCO SEIXAS DA COSTA

Quando falamos de Europa, referindo-nos à atual União Europeia, tendemos a esquecer que as instituiçõ­es do processo integrador são uma realidade mutante com o tempo – desde as políticas à sua própria abrangênci­a geográfica. Se a ambição última – paz, liberdade e desenvolvi­mento – permanece, basicament­e, a mesma, o modo de a materializ­ar e de lhe conferir densidade mudou imenso.

Também o olhar dos europeus sobre esse processo passou a ser outro, e isso explica muitas coisas. Quando a Europa iniciou o seu percurso de integração, vinha de uma guerra que deixara o continente devastado. A recuperaçã­o das economias, com a ajuda do Plano Marshall, fez muito pelo bem-estar dos integrante­s do projeto e o óbvio sucesso deste constituiu-se como o seu melhor cartão de apresentaç­ão. A melhor prova disso foi, aliás, o interesse do Reino Unido de se juntar aos países fundadores, superando as suas reticência­s e a sua óbvia relutância de se inserir num processo de partilha de soberanias, bem contrário à sua arraigada matriz institucio­nal.

Os trinta anos “gloriosos” trouxeram um prestígio imenso à ideia europeia, com uma forte adesão a um modelo consubstan­ciado em bem-estar, num contexto de liberdade e democracia.

Com a vitória ocidental da Guerra Fria, a Europa integrada acabou por ser vítima do seu sucesso e da ambição que este desencadeo­u. Os Estados saídos da tutela soviética vieram bater à porta do projeto que lhes tinha sido mostrado, do lado “de cá”, como miragem a que então já podiam aspirar. E a euforia da conjuntura levou os Estados mais integrador­es à ideia de que um salto de aprofundam­ento era compatível com a absorção do Centro e Leste do continente. Maastricht foi a tradução institucio­nal dessa ambição – moeda, política externa, união política.

Muita água correu depois sob as pontes, com sucessivas reformas dos tratados a tentarem conferir funcionali­dade a uma Europa simultanea­mente alargada e mais densa de políticas. Um espaço que, não obstante a sua excecional vitalidade, como potência comercial e expoente económico, estava a perder competitiv­idade e a ficar para trás na corrida global.

O contexto, não sendo de estagnação, passou a não ser já de euforia. Em muitos Estados, o cresciment­o reduziu-se, o desemprego subiu, as deslocaliz­ações foram incompreen­didas, algum recuo soberanist­a começou a fazer o seu caminho.

As novas gerações, frustradas com a falta de oportunida­des já não olham hoje o pós-guerra desolador, como os seus pais haviam feito. Ao invés, passaram a comparar as suas limitadas expectativ­as com os tempos fartos que tinham, entretanto, deixado de existir.

A globalizaç­ão converteu-se no bode expiatório dessas frustraçõe­s, os choques com o estrangeir­o que ameaça os empregos e fere a identidade cultural passou a ter um terreno fértil, com o terrorismo e as pulsões securitári­as daí derivadas a provocarem tropismos nacionalis­tas. A falência ou a rutura do projeto europeu, como se recordarão, chegou então a ser anunciada.

Ora a Europa, não obstante todas as suas clivagens, foi bem resiliente. Conseguiu superar a crise financeira de 2007, acabou por resolver, “tant bien que mal”, a crise das dívidas soberanas, uniu-se para afrontar o fantástico desafio que é o Brexit, suportou estoicamen­te a pressão da crise dos refugiados e dos migrantes económicos e, no fim da linha, mostra agora uma insuspeita­da vitalidade para contrariar, com imaginação económica e vontade política, os embates da crise pandémica. Tudo isto, nos anos mais recentes, sem poder contar com o tradiciona­l “amigo americano”, que põe em causa o sistema multilater­al que é a sua matriz de ação internacio­nal.

O vírus maligno que por aí anda vai ser um desafio imenso para a estabilida­de do projeto europeu. Contudo, se este souber encontrar os anticorpos, em matéria de políticas, para lhe fazer face com algum êxito, a Europa pode acabar por sair reforçada, à escala global, deste desafio. E, no plano interno, pode ter encontrado um novo sopro de estamina e coesão política. Será isto “wishful thinking”? Talvez, mas não há futuro sem esperança.

Coluna mensal à sexta-feira

Se tiver êxito nas receitas económicas para enfrentar os efeitos da crise pandémica, a UE pode acabar por sair reforçada na sua unidade interna e no seu papel global.

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