ANTÓNIO MOITA “Como a Justiça não tem ministra, a não ser para questões administrativas, os interesses pessoais e de classe vão ganhando terreno.”
Onosso modelo de governação assenta na separação de poderes querendo com isto significar que os poderes legislativo, executivo e judicial devem atuar de forma separada e independente sem, contudo, pôr em causa a unidade do Estado. Procurando garantir a estabilidade do sistema político, pretende-se, ao mesmo tempo limitar e controlar o exercício dos diferentes poderes. Estamos, porém, numa fase em que o exercício de funções das principais figuras do Estado contribui para confundir os planos de intervenção de cada um, subvertendo muitas vezes as regras e criando nos cidadãos a ideia de que o sistema está podre e sem quem o controle. A pandemia não explica tudo. Se é certo que alguns problemas se agravaram por efeito do confinamento e das dificuldades de o Estado assegurar a prestação regular dos serviços públicos, a verdade é que esta tempestade que nos atingiu está a deixar bem à mostra os alicerces do regime e permite ver com clareza o estado de avançada deterioração em que se encontram.
Alguns exemplos da desorientação reinante. O Presidente da República, depois de se ter autoconfinado no início da crise, procurou colar-se ao Governo e, tal como já havia feito noutras situações de calamidade, quis passar a ideia de que estava aos comandos do navio. Querer parecer aos olhos do povo que também governa o país acentuando o pendor presidencialista do sistema semipresidencial em que vivemos é uma tentação que se paga muito caro, especialmente quando as coisas não correm bem. É o que está agora a acontecer quando vê os seus níveis de popularidade à direita a cair nas sondagens. Vai daí, não descansa enquanto não convencer a sua base de apoio de que no seu segundo mandato António Costa vai ver o que é ser apertado. Quem quiser que acredite.
No Governo a mesma desorientação. Depois do primeiro embate da covid-19 temos a tão propalada eficácia das medidas a derrapar. Umas porque não chegaram a acontecer, outras porque não resolvem o problema, outras ainda porque denotam que há doenças colaterais que começam a surgir. São as consultas e os tratamentos que ficaram por fazer, os comboios e os autocarros que não existem, as “listas negras” que retiram Portugal da primeira linha dos destinos mais seguros do mundo. E como a composição do elenco governativo não é coesa e os seus membros têm agendas diferentes, assim que um deles é posto em causa logo a fação contrária dentro do Partido Socialista aparece a aproveitar a oportunidade.
No Parlamento o habitual. O acessório é tratado à esquerda. O essencial é garantido pelo centrão. Nada de novo, portanto. Até já temos deputados que ao verem as suas propostas rejeitadas no exercício normal da democracia ameaçam recorrer aos tribunais comuns para fazer valer as suas pretensões. Seria bom que se concentrassem em cumprir o seu papel.
Já agora o poder judicial. Como a Justiça não tem ministra, a não ser para questões administrativas, os interesses pessoais e de classe vão ganhando terreno e, sempre que podem, tentam entrar na luta política pela janela porque continuam a não ter a coragem de entrar leal e frontalmente pela porta. E porque é cada vez menos certo que venham a ser concretizadas as condenações a que o Ministério Público aspira, o melhor mesmo é permitir ou estimular sentenças imediatas em tribunais populares alimentados pela comunicação social. Depois, um dia, quando a justiça verdadeiramente se fizer, logo se vê no que dá. Se correr mal, sempre haverá quem diga que são danos colaterais.
Quando mais precisamos de lucidez e de ordem, o sistema não responde. E não é preciso saber muito de História para perceber que quando o equilíbrio entre os poderes está comprometido e a desorientação se instala, o resultado não pode ser bom.
Como a Justiça não tem ministra, a não ser para questões administrativas, os interesses pessoais e de classe vão ganhando terreno.
Até já temos deputados que ao verem as suas propostas rejeitadas no exercício normal da democracia ameaçam recorrer aos tribunais.