Jornal de Negócios

FRANCISCO MENDES DA SILVA

Há quem tente estudar com aspirações intelectua­is e académicas estes fenómenos.

- LIVRO-RAZÃO FRANCISCO MENDES DA SILVA Advogado

“Esta poderia ser só uma história do noticiário caricato da ‘silly season’.”

No passado fim de semana entretive-me com a atenção que alguma imprensa resolveu dar a uma personagem chamada “Pedro Borges de Lemos”, militante e supostamen­te “dirigente” do CDS, suposto líder de uma suposta “tendência” interna, supostamen­te chamada “CDSXXI”. “Pedro Borges de Lemos” acompanhou André Ventura na manifestaç­ão com que o Chega quis afirmar que Portugal não é um país racista. Segundo a imprensa – e as sentenças que a replicaram nas redes sociais –, “Pedro Borges de Lemos” é a prova de que a direita está a fugir para o Chega.

As notícias terão segurament­e levado os leitores a franzir o sobrolho, intrigados e expectante­s. Não tanto por causa do aparente movimento nas placas tectónicas da direita portuguesa, mas porque há uma questão, mais imediata e comezinha, que se impõe: quem é “Pedro Borges de Lemos”? Boa pergunta.

Aqui há uns anos, de um dia para o outro, apareceu no CDS (enfim, a falar como militante do CDS) esse tal de “Pedro Borges de Lemos” (não consigo deixar de escrever o nome entre aspas, porque para mim “Pedro Borges de Lemos” ainda é meio homem e meio mito). A tipologia topava-se à distância: alguém a querer fazer pela vidinha, aos ombros de uma agência de comunicaçã­o, a escrever umas vacuidades neste e naquele jornal, tudo se resumindo à seguinte tese: se não pego eu nos destinos da pátria, a pátria seguirá o seu previsível caminho pela sarjeta da História. O Jornal Económico deu-lhe poiso regular, o Público abriu-lhe as suas páginas de quando em vez, o Diário de Notícias até lhe concedeu pelo menos uma entrevista. Tudo porque “Pedro Borges de Lemos” é líder de uma tendência interna no CDS. Extraordin­ariamente ninguém se deu conta de que no CDS as tendências têm de ser formalizad­as segundo os estatutos, com um número significat­ivo de assinatura­s, e que a tendência de que aquela figura diz ser líder é uma realidade virtual que só existe na cabeça do seu inventor.

No início do ano, “Pedro Borges de Lemos” foi ao Congresso do CDS em Aveiro para engrossar o coro dos que achavam que a moderação de Paulo Portas e Assunção Cristas havia sido um caminho de perdição para a direita. A tese vingou, mas pela mão de outros, e “Pedro Borges de Lemos” saiu da reunião com a mesma relevância com que tinha entrado. Já em 2018 havia estado no Congresso de Lamego. Apresentou moção e deduziu contestaçã­o a Cristas, sem que alguém tivesse deduzido quem “Pedro Borges de Lemos” é. Fez um discurso inane, de uma penúria só comparável ao número de votos que teve, e saiu da encosta duriense pela mesma viela obscura e lúgubre em que viajou até lá.

Dei-lhe alguma atenção quando há dois anos apareceu na imprensa a dizer que queria afastar Hélder Amaral da liderança da Distrital de Viseu do CDS, porque Hélder Amaral nem nasceu em Viseu. “Ele nasceu em Angola”, afirmava, citado pelo Jornal do Centro. Estamos a ver onde “Pedro Borges de Lemos” quis chegar, não estamos? Estamos. Para quem diz que Portugal não é um país racista, não está nada mal.

Esta poderia ser só uma história do noticiário caricato da “silly season”. Sucede que é uma história exemplar dos nossos tempos. Antes de mais, é a história da crise da imprensa, de como muitos jornalista­s vão pavloviana­mente atrás do epifenómen­o, em vez de assumirem o seu estatuto de mediação.

Mas é também a história dos partidos como o Chega, típicos da contempora­neidade, com um eleitorado potencial enorme, abstencion­ista, ávido de representa­ção, que quer mais a destruição do sistema do que a construção de qualquer solução democrátic­a coerente, e no qual podem ter lugar e destaque, sem a mínima surpresa e contestaçã­o interna, todos os tipos de oportunist­as.

Há quem tente estudar com aspirações intelectua­is e académicas estes fenómenos e as pessoas que lhes dão corpo, como se estivessem a falar de líderes sérios e consistent­es de um povo esquecido pelas elites. Eu confesso que, percebendo a razão de ser do movimento geral, o máximo que consigo, quando desço ao pormenor e vejo quem são as personagen­s da trama, é citar aquele verso do Alex Turner no final de uma canção dos Arctic Monkeys: “Who wants to be man of the people when there’s people like you?”

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