Manifesto antirresiliência
CV: Paragrafino Pescada tem o mérito inquestionável de ser sobrinho de Virgolino Faneca, que ao longo de quatro anos escreveu neste suplemento. É licenciado em Estudos Artísticos pela Universidade de Salónica com uma pós-graduação em Ciências da Vida, obtida no Café da Geninha. O seu ídolo é o tio, embora admire a capacidade pantomineira de Donald Trump. Nunca se engana e raramente tem dúvidas. Quando as tem, pergunta ao Nuno Rogeiro ou à Siri do iPhone. Gosta de jogar Cluedo e percebe à brava de semiótica, embora ninguém lhe tenha ensinado. É solteiro e do signo Caranguejo (se é que esta informação interessa a alguém).
Caro leitor, este não é um manifesto contra o Plano de Recuperação e Resiliência que tão doutamente o nosso primeiro-ministro apresentou, mas sim um manifesto contra a palavra resiliência propriamente dita ou escrita.
Este substantivo tomou conta das narrativas públicas, qual erva daninha, e tem o condão de me irritar até ao tutano. É uma daquelas palavras que entrou na moda e fica bem proferir, só porque sim, e também porque tem um certo lustro. Quem a verbaliza entra numa espécie de campeonato das elites e procura um estatuto que o alcandore ao pináculo dos pensadores nacionais. Merece um manifesto? Claro que sim. Ainda mais quando o Costa, o primeiro-ministro, e o Costa, o mentor do tal plano de recuperação, se lembraram de acrescentar o termo resiliência, dando a esta irritante palavra uma configuração tremendamente institucional. Basta pum basta!
Depois as pessoas julgam que evocar resiliência é uma forma sofisticada de dizer superar as adversidades. Esta presunção é um logro, na medida em que resiliência, elucida o dicionário Priberam, nasceu do latim “resilio” que significa “saltar para trás, voltar para trás, reduzir-se, afastar-se, ressaltar, brotar”. Ou seja, em última análise, o Plano de Recuperação do país, sendo também de resiliência, é contraditório, na medida em que também pretende que o país volte para trás quando a intenção dos governantes é que siga em frente, em direção ao pote de ouro (leia-se fundos comunitários) que estão no fundo do arco-íris.
Basta pum basta!
Mais. O conceito resiliência começou por ser usado no vocabulário da física correspondendo às propriedades de resistência de um material, isto é, à sua capacidade de retornar ao estado original, após sofrer diferentes pressões. É isso que queremos? Voltar ao estado original? E qual é ele?
Basta pum basta!
A Ermelinda, minha terna explicadora de semiótica textual, diz que é preciso ver além das palavras, mergulhar a fundo no significante, usando as botijas de ar de Ferdinand Saussure, e libertarmo-nos das grilhetas do significado. Eu bem tentei, mas o cadeado da resiliência tem uma combinação indecifrável. Ainda usei descodificadores como “stakeholders”, “partners”, “summit” e “commitment” para abrir a porta desse imenso conhecimento, mas a minha estratégia foi debalde. Valeu que a Ermelinda compensou o meu fracasso com outras valências da semiótica que até então desconhecia, mas se revelaram deveras compensadoras.
Basta pum basta! Abespinha-me ouvir a palavra resiliência. Tem um gosto a novo-riquismo condimentado com presunção e altivez. Resiliência, o tanas! Porque não dizer apenas resistência ou determinação? Ai não, que isso é muito frívolo… Resiliência é a cereja no topo do bolo dos maneirismos discursivos. Eleva quem é a profere, distingue dos portugueses comuns, faz festinhas ao poder, qualquer que ele seja.
Nasce assim uma vontade danada de recriar o Manifesto anti-Dantas de Almada Negreiros, adiantando-a a esta realidade pustulenta.
Basta pum basta! Um país que consente deixar-se representar pela resiliência é um país que nunca o foi! (…) Um país com a resiliência à proa é uma canoa furada! (…) A resiliência é a vergonha da intelectualidade portuguesa! A resiliência é a meta da decadência mental! E ainda há quem não core quando verbaliza a palavra resiliência! E ainda quem a aplauda! Basta pum basta!
Exagero? Obviamente. Mas é preciso ser muito resistente para suster os ataques diários da resiliência que chegam de todos os lados. E, às tantas, um tipo rebenta. A resiliência é um retrato de um tempo em que a forma se sobrepõe ao conteúdo, um desafio no qual a paciência é derrotada, um modismo fútil.
Basta pum basta!
Nestes tempos de pandemia a resiliência é outro vírus que anda aí à solta e para o qual ninguém se preocupa em encontrar um antídoto. Talvez seja de combatê-lo também com palavras como salpa, a qual identifica um pequeno animal pelágico da família dos salpídeos, de corpo gelatinoso e transparente. Morra a resiliência, morra! Pim! Tenha um bom fim de semana e use máscara. A resiliência anda aí.